Daniel José Ribeiro de Faria

As Raízes do Unitário-Universalismo (Parte I)

Por Daniel José Ribeiro de Faria em Julho de 2023

Tema Mundo Esotérico / Publicado na revista Nº 33

O unitário-universalismo é uma espiritualidade moderna com uma longa história.

As raízes do unitário-universalismo radicam no cristianismo liberal e progressista, especialmente no unitarismo e no universalismo, duas correntes que se desenvolveram nos primeiros séculos do cristianismo, embora considere que todas as grandes tradições espirituais da humanidade são caminhos autênticos da conexão com o Divino como Fonte da Existência e da Vida.

O unitarismo e o universalismo tiveram diversas manifestações na história ao longo dos últimos dois milénios, umas mais visíveis, outras mais discretas, quando foram objeto de perseguições por parte dos poderes instituídos.

A pluralidade interna do cristianismo nos primeiros séculos

Jesus foi o inspirador de uma comunidade espiritual de homens e de mulheres que se congregavam para viver a experiência do Espírito de Deus e do seu Reino. Nessa comunidade, os homens e as mulheres tinham papéis absolutamente equitativos, um aspeto da maior relevância que importa recuperar, valorizar e potenciar.

O movimento de Jesus, no qual se baseou o cristianismo primitivo, foi um movimento que radicava nos ensinamentos do mestre e na tradição judaica, embora existissem influências das filosofias estoica e cínica e da mitosofia mistérica helenística.

As comunidades cristãs primitivas tinham uma orientação apocalítica e uma organização de tipo carismático e democrático. Por um lado, esperavam a vinda iminente do Reino de Deus no mundo. Por outro lado, eram comunidades baseadas na diversidade dos carismas e de ministérios e na igualdade entre os seus membros, incluindo entre homens e mulheres, que desempenhavam importantes responsabilidades de liderança.

No que se refere à relação de Jesus com Deus, pode-se afirmar que as primeiras comunidades do século I tinham uma visão claramente baseada no unitarismo, dado que enfatizavam a unidade de Deus.  

Com efeito, no cristianismo original, a fé no Deus uno era considerada como um pilar fundamental. O facto de Jesus ter sido elevado e glorificado por Deus era considerado como resultado da fé no Deus uno. 

As primeiras comunidades seguiam a visão de fé teocêntrica de Jesus, focada na Realidade Divina, o grande Mistério do Universo, da Vida e do Amor, a quem ele designava carinhosamente de Abba.

Jesus, o Cristo, era visto como a manifestação humana por excelência da Sabedoria Divina, da qual podemos ter a experiência no Espírito. Um ser iluminado e iluminador, dentro da tradição dos profetas de Israel, homens e mulheres que foram emissários da Sabedoria Divina.

Os seguidores do movimento de Jesus valorizavam a natureza humana de Jesus, como filho de Maria e José e descendente do rei David, sendo o Messias de Israel e o mensageiro por excelência de Deus junto da humanidade em geral.

No âmbito do cristianismo primitivo, desenvolveu-se o universalismo como uma corrente centrada na ideia da reconciliação ou salvação universal, segundo a qual todas as formas de existência são chamadas a reconciliar-se com o Divino como Fonte infinita de amor e misericórdia. No âmbito do universalismo, merece destaque a figura de Orígenes. 

Ao longo da História, tem existido uma pluralidade interna no cristianismo. O cristianismo primitivo era igualmente plural, existindo uma diversidade de conceções sobre a mensagem de Jesus, embora partilhassem em comum a ideia do Reino de Deus e a reverência pela figura de Jesus.

Segundo António Piñero, um grande investigador do cristianismo primitivo, esta diversidade de opiniões pode sintetizar-se a três correntes principais.

A primeira corrente era composta fundamentalmente de judeus, os sucessores dos que haviam seguido mais de perto Jesus em vida. Enfatizavam a natureza humana de Jesus, como filho carnal de Maria e José, e viam nele como o Messias, o enviado de Deus, junto do povo de Israel e da humanidade em geral.

A segunda corrente era formada sobretudo por antigos pagãos convertidos à fé cristã seguindo as orientações de Paulo de Tarso, mais conhecido como São Paulo. A sua crença distintiva fundamental consistia em que Jesus tinha aceite a sua própria morte, decidida por Deus, como um sacrifício necessário para eliminar os pecados contra Deus, não somente do povo judeu, mas da humanidade no seu todo. Tendiam a valorizar a divindade de Jesus em detrimento da sua humanidade. Esta corrente era a mais forte e a melhor organizada.

Mas havia um terceiro grupo, no qual participavam judeus e pagãos. Os seus membros sustentavam tinham um conhecimento secreto, ou seja, a gnose, graças à qual conseguiriam uma salvação plena e absoluta.

Deste modo, António Piñero refere-se às três grandes correntes ou ramificações do cristianismo primitivo: os judeo-cristãos, os cristãos proto-ortodoxos e os cristãos gnósticos. A designação proto-ortodoxa, a usada por diversos autores é utilizada pelo facto da ortodoxia ter sido definida como tal somente nos concílios dos séculos IV e V, quando as demais correntes foram consideradas como heterodoxas ou heréticas.

Na perspetiva de Elaine Pagels, uma das principais investigadoras dos manuscritos do cristianismo gnóstico, podem ser mencionadas as principais caraterísticas distintivas entre os cristãos proto-ortodoxos e os cristãos gnósticos

Em primeiro lugar, os cristãos proto-ortodoxos enfatizavam a existência de uma separação entre Deus e a humanidade. Deus é considerado como totalmente outro e transcendente. Por seu turno, os gnósticos consideravam que o autoconhecimento é o conhecimento de Deus.

Em segundo lugar, o Jesus dos manuscritos gnósticos fala sobretudo de ilusão e iluminação, e não de pecado e expiação, referidos habitualmente no Novo Testamento.

Em terceiro lugar, os proto-ortodoxos acreditavam em Jesus como o Filho de Deus de forma ímpar e exclusiva, separado do resto da humanidade que veio salvar. Os gnósticos consideravam Jesus como como um guia ou mestre espiritual que abre acesso ao conhecimento espiritual. Quando o discípulo alcança a iluminação, ele torna-se igual ao mestre. 

Constata-se o ensinamento cristão gnóstico, baseado na identidade entre o divino e o humano, no foco pela ilusão e pela iluminação e na conceção de Jesus como guia espiritual, tem uma clara ressonância de cariz budista e hindu.

Os primeiros três séculos são também caraterizados pelo desenvolvimento do pensamento teológico, nomeadamente sobre a pessoa de Jesus e a sua relação com Deus.  

Ao longo dos três primeiros séculos do cristianismo, aparecem pensadores que afirmam a natureza mais que humana de Jesus e atribuem-lhe um caráter divino, ou semidivino, como Filho de Deus. 

Contudo, a generalidade dos pensadores cristãos, como Clemente de Alexandria, e Orígenes, aderiram de forma clara à fé na unidade de Deus, herdada do judaísmo, sempre subordinando Jesus, o Cristo, ao Deus uno.

O triunfo do cristianismo dogmático 

Com o reconhecimento da liberdade religiosa por parte do Império Romano, em 312, as divergências teológicas entre cristãos vieram definitivamente à tona. 

Constituíram-se dois grandes grupos: os que afirmavam que o Filho havia sido criado por Deus no princípio, e que, portanto, não podia identificar-se com Ele, que se agruparam ao redor de Ario, e os que afirmavam que o Filho era consubstancial com o Pai, liderados pelo bispo Alexandre de Alexandria e especialmente por seu sucessor, Atanásio. 

No concílio de Niceia, em 325, convocado pelo imperador romano Constantino I, foi aprovada a visão tradicionalmente ortodoxa da Trindade e a igualdade de Jesus com Deus. 

O desfecho do concílio de Niceia radicou na falta de compreensão de que que Jesus e Cristo são realidades diferentes e não uma entidade única. Cristo é a inteligência infinita de Deus, presente em toda a criação. A consciência crística é a expressão viva do Amor Divino, ao mesmo tempo transcendente e imanente. É a consciência divina universal e a unidade com Deus, manifestada por Jesus e outros grandes mestres espirituais e que todos nós somos convidados a manifestar.

As consequências do concílio de Niceia e da fórmula dogmática aí aprovada, que foi reafirmada pelos concílios ecuménicos posteriores, para o cristianismo e a humanidade, foram enormes. A fé deixou de ser de ser vista como vista como uma relação de confiança e de entrega a Deus, passando a ser encarada como a adesão incondicional a um conjunto de dogmas doutrinários cada vez mais complexos. Os judeo-cristãos, os gnósticos e todos os demais cristãos que não compartilhavam esta visão dogmática foram excluídos e perseguidos. Para os judeus, e posteriormente, para os muçulmanos e os seguidores de outras tradições espirituais em geral, a fórmula dogmática permaneceu incompreensível.

Durante o longo período da Idade Média, que se estende entre o fim da Antiguidade Clássica e o advento da modernidade, os indivíduos e os grupos que preconizavam uma visão unitária e universalista da mensagem cristã permaneceram essencialmente na penumbra, devido à crescente intolerância do cristianismo institucional. 

No âmbito da Idade Média, o unitarismo teve influência nos reinos godos que ocuparam territórios do Império Romano do Ocidente e nos cristãos moçárabes da Península Ibérica que viviam sob domínio islâmico.

O unitarismo também teve influência nos cristãos do Oriente, o que explica o surgimento e a expansão do islão. De acordo com um crescente número de investigadores, a formação do islão teve como um dos principais pilares a influência do judeo-cristianismo, tendo em conta existiam comunidades judeo-cristãs na Arábia no início do século VII, quando Maomé começou a sua atividade profética. Ao longo da sua vida, Maomé manteve uma relação amistosa com os judeo-cristãos. 

Após a morte de Maomé, em 632, os seus sucessores criaram um vasto império, que se estendia do Atlântico ao Indo. O islão granjeou rapidamente a adesão da maioria das populações do Médio Oriente e do norte de Africa, o que se deveu em grande parte à sua simplicidade das suas crenças, como a unidade de Deus e a reverência por um Jesus estritamente humano como o maior dos profetas, somente superado por Maomé.

 O ressurgimento do unitarismo e do universalismo na modernidade

 

Com o surgimento da Reforma Protestante, no início do século XVI, que reivindicava o livre exame das Escrituras bíblicas, diversos cristãos começaram a expor as suas perspetivas sobre a mensagem doutrinal cristã. Um deles foi Miguel Servet, teólogo e médico espanhol, que questionou a base bíblica e racional do dogma da Trindade, tendo sido perseguido tanto pelo catolicismo romano como pelo protestantismo calvinista. Detido em Genebra pelos seguidores do reformador protestante João Calvino, foi morto na fogueira. 

O legado de Servet foi fortemente inspirador. Formaram-se movimentos unitários em diversos países europeus, nomeadamente na Alemanha, na Polónia, nos Países Baixos, na Transilvânia e nas Ilhas Britânicas, sobretudo em Inglaterra. 

No século XVI, mereceu destaque especial o caso da Transilvânia. Ferenc David pregou o cristianismo unitário na Transilvânia, um território atualmente dividido entre a Roménia e Hungria, mas que na época era um estado independente. O príncipe João Segismundo da Transilvânia aceitou o unitarismo e promulgou a primeira legislação de tolerância religiosa na história moderna da Europa em 1568.

Em Inglaterra, o impulso radical da Reforma Protestante permaneceu entre as chamadas Igrejas Livres, opostas à hegemonia da Igreja Anglicana e de alguns reformadores radicais como John Biddle. 

Sob a influência das correntes liberais do Iluminismo, um número crescente de comunidades adotou a unitarismo nos séculos XVIII e XIX. 

A partir de Inglaterra, o unitarismo disseminou-se nas colónias britânicas da América do Norte, treze das quais formaram o núcleo fundador dos Estados Unidos da América, bem como noutros territórios.

Alguns dos pais fundadores dos Estados Unidos da América, entre os quais Thomas Jefferson, John Adams e John Quincy Adams, eram unitários ou tinham ideias muito próximas do unitarismo. 

Em 1838, o ministro unitário norte-americano Ralph Waldo Emerson, influenciado pelo romantismo e pelo hinduísmo, preconizou uma via intuitiva a Deus, baseada na capacidade inata da consciência individual, sem a necessidade de milagres, hierarquias religiosas ou mediações. Esta filosofia espiritual recebeu o nome do transcendentalismo.  

O unitarismo norte-americano, que se tornou particularmente pujante, teve um processo de profunda transformação interna. Com efeito, ao longo do século XX, o unitarismo norte-americano deixou progressivamente de ser uma confissão religiosa exclusivamente cristã para converter-se progressivamente numa espiritualidade liberal e cada vez mais multiconfessional e pluralista.

Entretanto, formaram-se movimentos que defendiam o universalismo. Na modernidade, os primeiros defensores do universalismo foram George de Bennevile, James Relly e John Murray, 

Merece ainda destaque a ligação do unitarismo e do universalismo com o espiritismo. O espiritismo também não reconhece a doutrina da Trindade e enfatiza os princípios da salvação universal e da liberdade de consciência. 

Em 1933, nos Estados Unidos da América, foi divulgado o Manifesto Humanista, subscrito por diversos cientistas e intelectuais, entre os quais líderes unitários. O manifesto afirmava que a vida e a humanidade surgiram por meios puramente naturalistas, designadamente a evolução, e que a espiritualidade devia deixar de especular sobre realidades metafísicas e concentrar-se na transformação do mundo e no aperfeiçoamento ético do ser humano. O humanismo teve um forte impacto no unitarismo norte-americano. 

Em meados do século XX, muitos unitários e universalistas começaram a valorizar os aspetos comuns que os uniam. Na sequência deste processo de aproximação, em 1961, a Associação Unitária Americana fundiu-se com a Igreja Universalista da América para fundar a Associação Unitária Universalista.

Em 1995, constituiu-se o Conselho Internacional de Unitários e Universalistas (ICUU) para coordenar as diversas comunidades unitárias e universalistas no mundo.

Daniel José Ribeiro de Faria 


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