A partir de meados do século XX, o cristianismo institucional tem sido confrontado com as implicações cada vez mais significativas das descobertas dos manuscritos do cristianismo gnóstico, a mais importante das quais foi a descoberta dos manuscritos de Nag Hammadi, no Egito, em 1945.
Eram manuscritos que pareciam ter desaparecido da História, quando as autoridades eclesiásticas do cristianismo institucional ordenaram a sua exclusão ao considerá-los apócrifos.
Com efeito, durante vários séculos, o acesso aos ensinamentos do cristianismo gnóstico foi reservado a certos movimentos espiritualistas, que atuavam na penumbra, devido à intolerância dos poderes políticos e religiosos ligados ao cristianismo institucional.
A oposição do cristianismo institucional em relação aos cristãos gnósticos é antiga, remontando aos primeiros séculos da era cristã.
Um dos promotores mais proeminentes dessa oposição foi Hipólito (170-235), um dos principais teólogos e presbíteros da Igreja de Roma, que foi o autor da obra “A Refutação de todas as heresias”, na qual fez uma abordagem do gnosticismo e das escolas iniciáticas da época e mostra ter um grande conhecimento da filosofia da Antiguidade e das suas diversas correntes.
A obra “A Refutação de todas as heresias” desapareceu por muitos séculos depois de ter sido escrita e não foi descoberta até 1842. Então, Houve uma breve onda de interesse, mas infelizmente outras descobertas históricas da segunda metade do século XIX e do século XX ofuscaram o seu estudo. Atualmente, na sequência do interesse crescente pelo cristianismo gnóstico, a investigação da obra adquiriu um novo fôlego.
Nesta obra, Hipólito faz uma descrição de diversos movimentos gnósticos, que ele considerava heréticos, ou seja, desviantes em relação ao que ele considerava o modelo normativo do cristianismo.
Durante muito tempo, predominou a perceção de que o cristianismo gnóstico foi um desenvolvimento posterior do cristianismo original, surgido nos séculos II e III da nossa era.
Contudo, o conhecimento cada vez mais aprofundado da realidade multifacetada do cristianismo original tem demonstrado que a dimensão gnóstica estava presente no cristianismo desde o início e era, de facto, o próprio coração dos ensinamentos de Jesus e dos seus primeiros seguidores.
A TORRE E O BALUARTE
Jesus foi o inspirador de um movimento espiritual de homens e de mulheres que se congregavam para ter a experiência do Reino de Deus como a grande utopia de uma humanidade reconciliada consigo própria e com a Fonte Divina da qual emana tudo o que existe.
Como todos os grandes mestres, Jesus tinha dois círculos claramente diferenciados de instrução espiritual.
Um círculo externo era constituído por profanos, isto é, pessoas que se identificavam com Jesus e os seus ensinamentos públicos, transmitidos através de parábolas, sermões e de outras declarações.
Um círculo interno, que pode ser considerado como a escola iniciática de Jesus, era formado por verdadeiros buscadores espirituais, entre os quais se contava um número considerável de mulheres, um fenómeno notável e revolucionário para a época. Este círculo era composto igualmente por familiares de Jesus, nomeadamente a sua mãe, Maria, os seus irmãos e irmãs. Segundo os Atos dos Apóstolos, o número de membros do círculo interno era de 120. Este círculo interno tinha acesso aos ensinamentos esotéricos de Jesus.
Os primeiros seguidores enfatizavam uma visão adocionista sobre a figura de Jesus. Enfatizavam a natureza humana de Jesus, como filho de pais humanos (Maria e José), mas que devido às suas excecionais qualificações foi adotado por Deus como seu Filho, Messias de Israel e mensageiro divino junto da humanidade em geral no decurso do seu percurso terreno.
Estes seguidores preconizavam a convicção de que Deus estava em Jesus, do mesmo modo que Deus está dentro de todos nós.
Eles também defendiam uma visão espiritual apocalíptica, a qual deve ser entendida de ponto de vista escatológico e não catastrófico, como não raras vezes é erroneamente interpretada. Isto é, esperavam a vinda iminente do Reino de Deus para Israel e a humanidade em geral. Um novo mundo onde não haveria mais lugar para o sofrimento, a opressão, o mal e a morte.
De ponto de vista eclesial, o cristianismo dos primeiros seguidores de Jesus era radicalmente democrático.
Considerando o atual estado das investigações, a Igreja judeo-cristã, entendida como a comunidade convocada, reunida e constituída em nome do Espírito de Deus que se manifestou em Jesus, o Cristo, era:
– Uma comunidade de homens e mulheres livres, e não uma instituição de poder;
– Uma comunidade de seres humanos essencialmente iguais, e não uma instituição hierarquizada e estratificada;
– Uma comunidade fraterna de irmãos e irmãs, e não uma estrutura dotada de um governo eclesiástico patriarcal e centralizado.
Contudo, embora os membros da Igreja judeo-cristã fossem essencialmente iguais em dignidade e direitos, não existia um igualitarismo indiferenciado, que pusesse em causa a diversidade dos carismas, dos dons e dos serviços.
Com efeito, existia uma grande diversidade de carismas e de ministérios, como os dos apóstolos, dos profetas, dos mestres e dos curadores, entre outros.
No que se refere especificamente aos apóstolos, eram considerados como tais as testemunhas originárias e anunciadoras da vida e da mensagem de Jesus. Não eram somente os Doze, o círculo de discípulos mais próximo de Jesus na sua vida terrena. Este título era igualmente válido para Maria Madalena, a primeira testemunha da ressurreição de Jesus, bem como para Paulo, que desempenhou um papel da maior relevância na disseminação da sua mensagem junto dos gentios.
No cristianismo original, merecem destaque duas figuras da maior relevância: Maria Madalena e Tiago.
Maria Madalena, cujo epíteto "Madalena" significa "torre alta" ou "elevada", era um membro destacado do círculo interno dos seguidores de Jesus. O seu papel proeminente é reconhecido nos evangelhos canónicos e apócrifos.
Foi a primeira pessoa a reconhecer a ressurreição de Jesus, transmitindo a fé firme de que o grande mestre foi elevado e glorificado por Deus. Foi a mensageira da boa nova aos demais discípulos. Eles duvidaram, inicialmente, mas ela manteve a sua fé firme e inabalável. Por isso, ela foi denominada como a apóstola dos apóstolos.
Com efeito, Maria Madalena é a mulher que conhece o Todo Divino que se manifesta em Jesus, a mulher que viu a luz quando os outros ainda se encontravam nas sombras, a mulher que compreendeu que Deus como Mistério da Vida e do Amor prevalece sempre, inclusive nas situações mais adversas.
Tiago, um dos irmãos de Jesus, era conhecido como “O Justo” ou “O Baluarte do Povo”, devido à retidão ética e à defesa dos valores da justiça e da fraternidade.
Tiago era simultaneamente observador estrito da tradição espiritual judaica, nas suas vertentes esotérica e exotérica, e conciliador. Ele era o líder da comunidade de Jerusalém, cuja primazia era reconhecida por todas as comunidades cristãs primitivas que então surgiram ao longo do século I. No concílio de Jerusalém, que decorreu no ano 50 da nossa era, Tiago desempenhou um papel de primeiro plano na abertura da nova fé aos gentios, os não judeus. De acordo com o concílio, que foi presidido por Tiago, os cristãos gentios, oriundos do paganismo, foram dispensados da observância das leis rituais judaicas. Segundo a perspetiva de Tiago, judeo-cristãos e cristãos de origem gentia deveriam conviver numa mesma comunidade eclesial.
Essas duas personagens podem ser considerados como formas complementares de viver a mensagem espiritual de Jesus.
Jesus deu a conhecer a vontade do Plano divino junto da humanidade. Com a mente e o coração a trabalhar em conjunto, uma via que for seguida por Maria Madalena e Tiago.
Tiago destacou-se pelo seu conhecimento e manuseio das escrituras sagradas, enquanto Maria Madalena destacou-se pelo amor devocional e incondicional.
Como uma torre alta, ela era a mais elevada de todas as mulheres. Como um baluarte, ele era o mais justo de todos os homens. Ela era mais apaixonada e amorosa. Ele era mais cerebral e reservado.
Fazendo uma análise comparativa da espiritualidade judaico-cristã com as espiritualidades indianas, pode-se afirmar que Maria Madalena e Tiago personificavam o bhakti yoga e o jnana yoga, respetivamente. Com efeito, bhakti yoga é o caminho de devoção e de entrega total para amar e contemplar o Divino em todos os seres e em todas as coisas, prestando-lhe adoração constante, enquanto o jnana yoga é o caminho da conhecimento e da compreensão para alcançar a iluminação ou a união com o Divino.
Personalidades diferentes, mas complementares, que se prezavam mutuamente e laboravam em conjunto pela implantação do Reino de Deus na Terra, com base no entendimento que a diversidade do movimento de Jesus é um fator de enriquecimento e de prossecução de uma unidade espiritualmente maior.
Pois, inspirados pelo Espírito de Deus, estes dois – Maria Madalena, a Torre e Tiago, o Justo ou o Baluarte, estavam à direita e à esquerda de Jesus.
OS NAASSENOS
Entre os movimentos gnósticos identificados por Hipólito, destacam-se os naassenos, uma linhagem cristã gnóstica que remontava ao século I da nossa era.
Os naassenos identificaram a fonte de sua tradição espiritual com Jesus, cujos ensinamentos foram transmitidos por dois mensageiros: Tiago e Maria Madalena, que é denominada como Mariamme pelos próprios naasenenos, à semelhança de outros grupos cristãos gnósticos.
O termo naassenos pode ter uma dupla origem. Por um lado, pode ser inspirada na palacra hebraica para serpente, nachash. Sendo um símbolo por excelência da sabedoria, a serpente representa a essência do universo, sem a qual nada do que existe poderá manter-se unido. A serpente é o Akāsha cósmico dos Upanishads hindus e o Kundalini, a força serpentina no ser humano, que quando é aplicada às coisas espirituais faz do ser humano um ente divino.
Por outro lado, o termo naassenos pode ser o resultado da aglutinação das palavras nazarenos e essénios. Há que ter em conta que os primeiros seguidores de Jesus eram denominados nazarenos (notzrim) ou ebionitas (ebionim) devido ao facto de valorizarem uma vida humilde consagrada a Deus. O seu movimento era também designado como o Caminho. A designação de cristãos surgiu somente em meados do seculo I, na cidade de Antioquia, a capital da Síria romana. A referência aos essénios pode ser a demonstração da reverência pela tradição mística e esotérica do judaísmo antigo, a qual foi especialmente valorizada pelos essénios.
Os naassenos acreditavam na Divindade primordial, simultaneamente masculina e feminina, fonte de toda a Vida, a quem denominavam do Primeiro Homem.
A Divindade primordial era representada como uma serpente que vive na essência do universo originário.
Esta crença não está longe da crença egípcia em Atum, a Divindade primordial e criadora, que gerou os corpos celestes e tudo o que existe.
Os naassenos eram pessoas que reconheciam o conceito de que as diversas religiões e escolas iniciáticas do mundo aludem ao mesmo Deus universal.
O Pai é o Primeiro Homem, desconhecido e indeterminado. O Filho do Homem é o Logos que pode ser identificado com o Cristo. Tanto o Primeiro Homem quanto o Filho do Homem são chamados de Adamas e são de fato o mesmo ser.
Para facilitar a compreensão, referir-se-á ao Primeiro Homem como a “Divindade primordial” e o Filho do Homem como a “Divindade manifestada”.
Os naassenos distinguiam três formas na Divindade manifestada: intelectual, animada e terrena.
Na perspetiva dos naassenos, a Divindade manifestada desceu à Terra e entrou em Jesus, nascido de Maria. Portanto, para os naassenos, Jesus era um ser genuinamente humano, filho de pais humano. A Divindade manifestada habitou-o num momento indeterminado.
Ao assumir as três formas da Divindade manifestada, Jesus pôde comunicar com os três tipos de seres humanos: espirituais, animados e terrenos.
Segundo a perspetiva naassena, a humanidade está dividida em três grandes categorias:
- Material (os "cativos") – as pessoas que vivem no domínio do materialismo;
- Psíquica (os "chamados") - os crentes ordinários, não iniciados;
- Espiritual (os "eleitos") – as pessoas conectadas com o conhecimento secreto da gnose.
Estas categorias não eram consideradas como classes rígidas e impermeáveis, pois cada ser humano é dotado de uma centelha da Divindade manifestada referida como “o andrógino Humano em tudo”.
O próprio Jesus era considerado divino, na medida em que a sua vida e obra manifestam a divindade e o elevado potencial inerente a todos os seres humanos. A condição que Jesus realizou é alcançável por todo o ser humano, caso decida evoluir na direção da Divindade.
Os naassenos distinguiam-se de outros cristãos gnósticos do seu tempo e de épocas posteriores que puseram de parte as Escrituras hebraicas (atual Antigo Testamento) e a herança espiritual judaica.
De facto, os naassenos utilizavam as Escrituras hebraicas. Os naassenos eram conhecidos por terem acesso a vários evangelhos apócrifos como o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Maria (Madalena), o Evangelho de Filipe, o Evangelho da Perfeição, o Evangelho de Eva, As Perguntas de Maria, Sobre a Prole de Maria e o Evangelho dos Egípcios.
Além disso, parecem ter tido contacto com os quatro Evangelhos futuramente canónicos (Mateus, Marcos, Lucas e João), algumas epístolas de Paulo e a epístola de Tiago, bem como as obras da filosofia da Antiguidade.
Elaine Pagels, na sua obra cita o trabalho de Jessie Weston, estudiosa de literatura celta, que traçou as origens das histórias do Graal aos naassenos, que faziam pontes entre a mensagem de Jesus e os cultos dos mistérios.
Segundo Mark H. Gaffney, as histórias do Graal originaram-se com os naassenos. Ele escreveu que, no fundo, os naassenos pretendiam transmitir a ideia de imanência, cujo significado é que Deus é tudo em todos. Carl Gustav Jung, um grande admirador do gnosticismo na modernidade, declarou que o Graal significa a realização da Divindade que alcança a matéria.
Os naassenos praticavam rituais iniciáticos. Aliás, os naassenos reconheciam relevância espiritual aos mistérios sagrados de outras tradições espirituais, como por exemplo os mistérios de Elêusis e do Egito.
No âmbito dos rituais naassenos, que foram estudados por April D. DeConick, os iniciados faziam um processo de despertar espiritual transformador, que lhes traziam novas revelações sobre o propósito da vida humana e a natureza da realidade.
Os rituais consideravam que os mistérios iniciáticos tinham sido revelados por Jesus, que trouxe consigo o caminho de regresso ao reino da Divindade primordial.
O iniciado era designado de teleios (perfeito), uma pessoa que aperfeiçoa a sua condição espiritual.
Antes da iniciação, os iniciados deveriam fazer voto de abstinência de relações heterossexuais. Os naassenos consideravam que a abstinência sexual era uma prática que os tornava andróginos, novos seres que não desempenhavam mais papéis masculinos e femininos separados, à imagem e semelhança da Divindade primordial. Por causa desse ensinamento de abstinência, os naassenos foram acusados injustamente pelos seus oponentes de fomentarem a homossexualidade.
A iniciação espiritual naassena englobava três estágios: a superação da mortalidade, a ascensão através das esferas celestes e a entrada no plano transcendente de Divindade primordial.
Com efeito, a experiência de transmutação proporcionada através dos mistérios iniciáticos abria o caminho para que os iniciados se tornem a própria Divindade.
A demanda da Sabedoria Divina simbolizada pelo Santo Graal tem sido uma busca da verdade. Isto é um aspeto da maior relevância que os cristãos gnósticos compreenderam, à semelhança de místicos de outras tradições espirituais. Atualmente o Santo Graal parece estar ao nosso alcance. Concretizar esse objetivo exige um compromisso firme. Segundo o mito, o Graal, ao ser alcançado por quem for digno dele, curará a terra estéril. Inspirados nos exemplos de seres como Maria Madalena e Tiago, talvez a terra estéril do nosso planeta possa ser finalmente curada.
Daniel José Ribeiro de Faria
BIBLIOGRAFIA:
Butz, Jeffrey J., Tiago, Irmão de Jesus e os Ensinamentos Perdidos do Cristianismo, Editorial Presença, Lisboa, 2006.
De Conick, April D., The Gnostic New Age, Nova Iorque, Columbia University Press, 2016.
Gaffney, Mark H., Gnostic secrets of the Naassenes: the initiatory teachings of the Last Supper, Rochester, Inner Traditions, 2004.
KÜNG, Hans, Cristianismo: Essência e História, Lisboa, Temas e Debates/Circulo de Leitores, 2012.
KÜNG, Hans, Religiões do Mundo: em busca dos pontos comuns, Lisboa, Editora Multinova, 2005.
MACEDO, António de Macedo, Esoterismo da Bíblia, Lisboa, Editora Ésquilo, 2006.
SLAVENBURG, Jacob, A Herança Perdida de Jesus, Lisboa, Marcador, 2012.
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