
O DIVINO FEMININO: RAÍZES ANTIGAS E HORIZONTES FUTUROS
Por Daniel Faria em Março de 2025
No princípio era a Divindade
Desde tempos imemoriais, a humanidade, na diversidade das suas culturas, nutriu uma profunda conexão com o Divino.
Esta abertura ao transcendente, universalmente experienciada, está enraizada na essência dos seres humanos de todos os tempos e lugares.
Esta conexão universal atravessa culturas, gerações e territórios, sendo um traço fundamental da experiência humana.
Diversos autores, entre os quais Joseph Campbell, Mircea Eliade, Marija Gimbutas, Riane Eisler, Karen Armstrong e Reza Aslan, corroboram esta visão, destacando que desde o Paleolítico o ser humano tem promovido uma relação com a dimensão espiritual da vida.
Durante o longo período do Paleolítico, a espiritualidade humana centrava-se numa Grande Divindade, frequentemente representada com traços femininos.
Na perspetiva de Joseph Campbell, a Divindade, presente em diversas culturas e tempos, é a personificação do ciclo eterno de nascimento, destruição e renovação, refletindo o equilíbrio cósmico entre as forças da natureza.
Campbell apresenta a Grande Deusa como a manifestação do mistério primordial do universo. Adorada em diversas culturas e tradições, a Deusa simboliza a fonte vital que gera, nutre, transforma e destrói. Ela representa a interdependência de todas as coisas e a harmonia universal que transcende o espaço e o tempo.
Essa figura arquetípica reflete as qualidades essenciais da natureza: a criação, o cuidado e o poder transformador. Nas culturas ancestrais, o Divino Feminino era reverenciado como o equilíbrio dinâmico entre os opostos – criação e destruição, luz e sombra, nascimento e morte – essenciais à harmonia entre a humanidade e a natureza.
Campbell aponta que a Deusa não é apenas uma figura mitológica, mas também um arquétipo central para a psicologia humana. Inspirando-se na psicologia de Carl Gustav Jüng, ele descreve a Deusa como a ponte entre o inconsciente coletivo e a consciência individual.
Como símbolo por excelência da unidade da Vida, a Divindade encarna a integração das polaridades interiores – o feminino e o masculino – necessárias para a prossecução da plenitude humana a nível individual e coletivo.
A conexão ancestral profunda com a Natureza
O estudo científico das origens da religião começou no século XIX, num período marcado pela crença de que todas as questões, incluindo as espirituais, poderiam ser analisadas e respondidas racionalmente.
Este movimento surgiu em paralelo à revolução científica fomentada por Charles Darwin e sua teoria da evolução.
A mesma abordagem que ajudou a explicar a biologia e o comportamento humano foi aplicada ao fenómeno religioso, levando estudiosos a considerarem a crença religiosa como um produto da evolução, com possíveis vantagens adaptativas para a sobrevivência da espécie.
Considerando a universalidade da espiritualidade ao longo das culturas e tempos, Reza Aslan considera que ela deve ser entendida como parte inerente da experiência humana.
A humanidade, argumenta ele, é essencialmente Homo religiosus, não devido a dogmas ou instituições, mas pelo desejo profundo de transcender o mundo visível e explorar o que está além.
A hipótese evolutiva propõe que a religiosidade proporciona vantagens adaptativas, ajudando as primeiras comunidades humanas a organizar-se socialmente, enfrentar o desconhecido e dar sentido à existência.
No século XIX, estudiosos começaram a formular teorias para explicar como as crenças religiosas surgiram.
O antropólogo inglês Edward Burnett Tylor considerava a religião uma resposta à crença na existência de almas separadas do corpo. Ele especulava que essa ideia derivava das experiências oníricas dos primeiros seres humanos. Durante os sonhos, acreditava Tylor, os nossos ancestrais viajavam para outros mundos e encontravam parentes ou amigos falecidos, levando-os a concluir que esses entes queridos continuavam a existir como espíritos. Este entendimento motivaria práticas espirituais e rituais, como oferendas e cerimónias fúnebres. Para Tylor, a religião começou com esta tentativa de comunicar com outras dimensões.
Max Müller, um estudioso alemão contemporâneo de Tylor, tinha uma visão diferente. Ele propôs que a religião não surgiu dos sonhos, mas do fascínio pelo mundo natural. O contacto com fenómenos incompreensíveis, como o movimento dos astros ou a vastidão dos oceanos, inspiraria sentimentos de reverência. Este deslumbramento conduziria à ideia de que forças sobrenaturais estavam por trás desses fenómenos, alimentando o imaginário religioso.
Robert Marett, etnólogo britânico, contribuiu com o conceito de mana, termo polinésio que significa "poder". O mana representa a força impessoal, imaterial e sobrenatural que permeia tudo o que existe, manifestando-se em todos os objetos inanimados e animados.
Este reconhecimento levou à adoração de elementos naturais e, eventualmente, ao desenvolvimento de deuses individualizados e totens. Marett argumentou que esta evolução culminou na ideia de uma Divindade única e universal, interpretada por muitos estudiosos como o auge do desenvolvimento espiritual humano.
Embora as hipóteses de Tylor, Müller e Marett diferissem, todas partiam do princípio de que a religião surgiu para responder a questões fundamentais e ajudar os primeiros humanos a lidar com um mundo imprevisível e, por vezes, ameaçador. Para Aslan, essas teorias refletem um consenso comum entre os pensadores do século XIX e início do século XX: a religião teria evoluído gradualmente, do animismo e do politeísmo para o monoteísmo, considerado por muitos na época como o estado mais "avançado" da espiritualidade.
Aslan observa que a explicação evolutiva para a origem da religião continua a ser uma abordagem amplamente aceita. No entanto, ele também critica as limitações destas teorias, que frequentemente ignoram a riqueza das experiências religiosas humanas e a diversidade de interpretações culturais. Para o autor, reduzir a religião a uma simples ferramenta adaptativa subestima o seu papel como um reflexo profundo da busca humana pela transcendência e pela conexão com o sagrado.
Atualmente, é consensial que o animismo como a forma mais antiga de espiritualidade humana.
Os humanos antigos acreditavam que o mundo estava repleto de espíritos que habitavam os animais, as plantas, os rios, as montanhas e outros elementos naturais.
Esta visão animista reflete uma relação profundamente interconectada entre o ser humano e o ambiente, onde cada elemento da natureza era visto como dotado de consciência e intencionalidade.
Para as populações humanas ditas primitivas, o mundo espiritual não era separado do mundo físico. Pelo contrário, os dois coexistiam e interagiam de forma constante. Este entendimento do sagrado não como algo distante, mas como uma parte intrínseca da realidade quotidiana, moldou a forma como os primeiros humanos compreendiam o seu lugar no universo.
Durante o Paleolítico, os humanos viviam em harmonia com a Terra, concebendo-a como um organismo vivo e manifestação da Grande Divindade. A Terra não era apenas um lugar de pertença; era o reflexo de uma realidade cósmica unificada, onde nenhuma entidade humana ousava exercer domínio absoluto.
Esta espiritualidade profundamente ecológica e cósmica encontrou expressão na arte paleolítica e na veneração de figuras femininas associadas à fertilidade e regeneração. A Grande Divindade, frequentemente representada de forma feminina, simbolizava a vida e os ciclos naturais, como nascimento, crescimento e renovação. Este culto à Deusa, presente nas sociedades pré-históricas, marcou o início de uma relação espiritual com o mundo natural, cujo impacto moldou os alicerces das civilizações agrícolas do Neolítico.
Viagem a um mundo perdido
Existe um número crescente de investigadores que têm tido um papel valioso na desconstrução da visão predominante de que a História da humanidade tem sido dominada desde sempre por hierarquias, violência, subjugação e desigualdade extrema.
Neste âmbito, deve ser enaltecido a relevância do legado de autores como Marija Gimbutas, Riane Eisler, Joseph Campbell, David Wengrow e David Graeber.
Antes da ascensão de culturas patriarcais baseadas no modelo de dominação, existiram sociedades organizadas segundo o modelo de parceria, caracterizadas pela igualdade de género, cooperação e respeito pela natureza.
Existem evidências arqueológicas significativas que desafiam as ideias tradicionais sobre as sociedades pré-históricas:
- A existência de numerosos artefactos que sugerem a existência de uma cultura profundamente conectada ao feminino. As figuras de deusas e as representações da fertilidade indicam que o Divino Feminino era reverenciado como símbolo por excelência da geração e da perpetuação da Vida.
- A ausência de fortificações e armas de guerra. Estas descobertas apontam para comunidades pacíficas, centradas na agricultura, na criação de animais, no artesanato e em rituais espirituais ligados à Natureza, sem sinais evidentes de violência organizada ou guerra.
Portanto, deve ser afastada a ideia de que as primeiras sociedades humanas eram necessariamente brutais e centradas na luta pela sobrevivência. Em vez disso, existem culturas parecem ter prosperado numa estrutura baseada na cooperação e no equilíbrio.
As principais características destas sociedades eram as seguintes:
- Equidade entre Géneros: Não havia uma subordinação sistemática das mulheres aos homens. Pelo contrário, as tarefas e as responsabilidades eram partilhados de forma equitativa, inclusive na dimensão sociopolítica.
- Harmonia com a Natureza: Estas comunidades demonstravam uma relação de respeito pela terra e pelos seus ciclos, vivendo em equilíbrio com os recursos naturais.
- Veneração do Feminino: A centralidade das figuras femininas nos rituais religiosos reflete uma valorização das qualidades associadas ao Divino Feminino, como a nutrição, a criação e a proteção.
Joseph Campbell realça a relevância do Neolítico na evolução das formas como os seres humanos entendiam o mundo e a sua relação com o sagrado.
Na perspetiva de Campbell, o cultivo da terra e a dependência dos ciclos naturais da colheita reforçaram a conexão com a Mãe Terra como fonte de vida, fertilidade e sustento.
Durante o Neolítico, a Grande Deusa era amplamente adorada como a Mãe Criadora, a personificação da natureza fértil e dos mistérios do nascimento e da renovação. As representações da Deusa nesse período incluíam estatuetas e ícones esculpidos em pedra e cerâmica, muitas vezes com ênfase nas características femininas associadas à fertilidade, como seios e quadris pronunciados. Campbell observa que essas figuras simbolizam não apenas a fertilidade biológica, mas o princípio criador universal, refletindo a perceção de que a vida emergia do ventre da Grande Mãe e retornava a ela na morte, num ciclo contínuo de renascimento.
Campbell detalha como as práticas religiosas e as estruturas sociais do Neolítico eram centradas na reverência ao feminino sagrado. A Deusa era não apenas uma figura de adoração espiritual, mas o centro da vida comunitária e espiritual.
O autor aponta evidências arqueológicas, como os sítios de Çatalhüyük e outras comunidades, onde foram encontradas representações de uma divindade feminina em poses de nascimento, gestação e poder maternal. Tais achados indicam uma sociedade em que a Divindade era a Fonte infinitamente poderosa de tudo o que existe, alimentando um sentido de unidade com a Terra e com os mistérios naturais.
A afirmação e a consolidação do patriarcado
Mas a história da humanidade não é estática. A evolução das sociedades humanas, sobretudo a partir do terceiro milénio a.C., foi marcada por um confronto entre dois modelos culturais distintos: o das sociedades agrícolas, centradas na Deusa Mãe e na cooperação, e o das tribos indo-europeias, caracterizadas pelo patriarcado, militarismo e expansão territorial. A transição do Neolítico para a Idade do Bronze foi marcada pela hegemonia crescente de povos indo-europeus.
Este processo foi profundamente analisado por autores como Marija Gimbutas, Riane Eisler, Joseph Campbell, David Wengrow e David Graeber, que destacam a importância desse choque de paradigmas na formação das estruturas sociais, políticas, culturais e espirituais do mundo moderno.
Os povos indo-europeus, originários de uma região entre o sul dos Urais e as estepes pôntico-caspianas, expandiram-se através de ondas migratórias que transformaram a Europa e a Ásia.
Na génese das migrações, estiveram alterações climáticas muito significativas, um aspeto da maior relevância para a contemporaneidade.
Nas áreas mais periféricas do planeta e da Eurásia em especial, onde a Terra não era exatamente uma boa mãe e as condições naturais já eram difíceis, registaram-se secas prolongadas e fomes generalizadas, em consequência da deterioração do clima. A agricultura tornou-se cada vez mais difícil. O pastoreio de rebanhos tornou-se cada vez mais a atividade predominante. Isso contribuiu para o esgotamento dos solos e agravou a escassez de recursos. Este cenário resultou num aumento dos conflitos entre diversos grupos humanos, em busca de sobrevivência.
A “hipótese Kurgan”, proposta por Marija Gimbutas, descreve essas populações como nómadas pastoris, com uma cultura centrada no cavalo, na roda e no símbolo solar. Estes grupos desenvolveram uma organização social baseada em hierarquias rígidas, com uma divisão tripartida clara entre sacerdotes, guerreiros e agricultores.
A domesticação do cavalo e a invenção do carro de guerra foram cruciais para a sua supremacia militar. Estas inovações, ligadas ao simbolismo do círculo solar, permitiram-lhes conquistar vastos territórios, desde a Índia até às Ilhas Britânicas. A sua cultura, marcada por uma ética guerreira e sacrifícios ritualísticos, contrastava com as sociedades agrícolas que encontraram, baseadas em valores de nutrição, regeneração e equilíbrio.
Riane Eisler explora a transição de sociedades de parceria, simbolizadas pelo cálice, para culturas de dominação, representadas pela espada. Este processo não foi apenas uma mudança militar, mas uma transformação profunda nos valores e na estrutura social, com as seguintes caraterísticas:
- A desvalorização do Divino Feminino. O culto à Deusa Mãe foi substituído por panteões dominados por deuses guerreiros masculinos.
- A ascensão do militarismo. A espada tornou-se o símbolo do poder, refletindo a centralidade da força e da subjugação. A violência foi institucionalizada e glorificada, marcando uma mudança radical na forma como o poder era exercido e legitimado.
- As sociedades passaram a ser organizadas de forma cada vez mais hierarquizada, com uma elite masculina a controlar os recursos e o poder político.
A transição para o patriarcado trouxe mudanças profundas nas crenças e práticas religiosas:
- A reformulação dos mitos. Os mitos antigos foram adaptados para legitimar a supremacia masculina, substituindo a Deusa por deuses guerreiros. As narrativas de violência divina tornaram-se centrais, reforçando a ideia de poder através da força.
- A consolidação da dominação. A religiosidade passou a enfatizar a obediência e o medo, criando uma cultura de controlo e punição.
A transição para modelos de dominação teve efeitos devastadores:
- As mulheres perderam o seu estatuto, sendo relegadas a posições subalternas e subjugadas nas novas estruturas sociais.
- A consolidação das desigualdades. A cooperação e a equidade deram lugar ao conflito e à competição, resultando em sociedades mais desiguais.
- A exploração intensiva dos recursos naturais, reflexo da mentalidade de controlo, levou à degradação ambiental e a crises ecológicas.
Resgatar o Divino Feminino
Apesar das devastadoras consequências do modelo de dominação, o potencial para uma sociedade baseada na parceria permanece. A recuperação de valores cooperativos e a reconexão com a espiritualidade holística centrada na Divindade podem orientar a humanidade para um futuro mais equilibrado e inclusivo.
Estudar as culturas antigas demonstra que alternativas viáveis ao modelo patriarcal já existiram, oferecendo um caminho para superar as dinâmicas de opressão e recuperar a harmonia perdida.
A redescoberta do Divino Feminino nas obras de Gimbutas, Campbell e Eisler, entre outros pensadores, convida a humanidade a reavaliar os paradigmas culturais que moldaram a sua história. Este resgate é mais do que um retorno nostálgico; trata-se de uma possibilidade de reequilíbrio espiritual e social, em sintonia com a natureza e o cosmos.
O Divino Feminino, longe de ser uma figura do passado, emerge como uma metáfora poderosa para o renascimento da consciência humana.
Honrar a Divindade é mais do que um ato de fé; é um compromisso com a unidade da Vida e com o futuro que desejamos construir.
Ela nos chama a reconhecer que somos todos parte de um mesmo tecido cósmico, interligados e interdependentes.
A Divindade não está distante; ela circula em nós, torna-se vida quando a compartilhamos e acolhemos.
Ela é a força que nos une, que nos inspira a cooperar, a criar, a transformar e a lutar por um mundo mais justo e fraterno.
A Divindade nos convida a romper com as injustiças, a superar as divisões e a construir um horizonte novo, onde não há separatividade entre masculino e feminino, pois todos somos um só.
Ela é a herança que carregamos, o anúncio de um futuro que já começa hoje, no nosso quotidiano, nas nossas escolhas e nas nossas ações.
Honremos juntos essa força divina que habita em cada um de nós.
Promovamos a cooperação, a liberdade, a criatividade, a fraternidade.
Sejamos agentes de transformação, superando o que nos separa e construindo pontes para um mundo novo.
A Divindade nos chama à elevação da consciência e o futuro começa agora, em cada gesto de amor e compaixão que praticarmos.
Daniel José Ribeiro de Faria
BIBLIOGRAFIA
ASLAN, Reza – Deus: Uma Biografia, Lisboa: Quetzal Editores, 2018
CAMPBELL, Joseph – Deusas: Os Mistérios do Divino Feminino, São Paulo: Palas Athenas, 2023,
EISLER, Riane – O Cálice e a Espada: A Nossa História, O Nosso Futuro, Porto: Via Óptima, 2004.
GIMBUTAS, Marija – The Civilization of the Goddess: The World of Old Europe, Nova Iorque: HarperCollins Publishers, 1991.
GRAEBER, David, e WENGROW, David – O Despertar de Tudo: uma nova história da humanidade, São Paulo, Companhia das Letras, 2022.
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