
Entrevista a Glória Lino
Por Revista Espaço Aberto (Ana Pinheiro Torres) em Fevereiro de 2023
Bio: A Glória Lino nasceu em Angola. Gosta da vida, de pessoas, de poesia e de gatos (sente-se privilegiada com a companhia da “sua” Mika que é cega). E claro que também gosta de música, de alimentação natural, água, praia, natureza, sentir, pesquisar o transcendente…
APT - A Glória viveu em Angola até aos 13 anos de idade. De que forma o espaço e o lugar a influenciaram? O que retém desse tempo, dessa experiência?
GL - Costumo dizer que vemos as grandes diferenças quando mudamos de continente e de facto, nascer e viver em África nada tem a ver com viver na Europa. Africa é, segundo a minha perceção, vida pura. A força e a pureza arquetípica duma terra mãe com horizontes amplos e longínquos que nos sugerem eternidade. A Europa nada tem a ver com isto… é um continente mais cerebral, mais técnico, mais fechado. A diferença é imensa e mais sentida ainda com a idade que tinha quando vim para Portugal, no pós 25 de Abril. Tudo era estranho, escuro e castrador.
APT - Veio para Portugal, estudou Moda e teve uma carreira interessante, pode falar um pouco de como isso a influenciou?
GL - Em 1975 vim para Lamego e poucos anos depois segui para o Porto. Como a arte era o chão que me atraía, fui estudar para a Escola Soares dos Reis. Inscrevi-me no curso de Arquitetura e também, como segunda opção, em Design de Moda, que então era uma novidade. Frequentei os dois, mas acabei por de ter de optar pelo segundo, que iniciou primeiro, pois o cansaço assim o exigia. A Moda foi uma descoberta inesperada, mas revelou-se uma possibilidade de manifestar um outro tipo de arquitetura mais móvel, baseada no corpo humano. Tive uma experiência de trabalho ampla e privilegiada com a possibilidade de exercer a criatividade plenamente. O design de coleções implicava visitar feiras internacionais, fazer pesquisas temáticas e de tendências, trabalhar conceitos, formas e cor, selecionar materiais e colocar tudo isso em passerelle. Também fui coordenadora de desfiles na “Filmoda”, onde tive contacto com a indústria têxtil a nível nacional. Era uma profissão por vezes exaustiva mas apaixonante.
APT - Quando começou a produzir cerâmica?
GL - A partir de certo momento comecei a sentir que o meu percurso na moda estava completo. Já não me sentia seduzida por aquela atividade e surgiu a possibilidade de explorar outros caminhos que me permitiam deixar a superfície do corpo e passar para o interior. Precisava de crescer para dentro.
A vida trouxe-me propostas bem diferentes e fiz formação em design gráfico, trabalhei numa associação de Educação e Formação de Adultos, dei formação... fui também fazendo pesquisas noutras áreas complementares e de enriquecimento interior, se assim se pode chamar.
Quando esta fatia de vida se completou, dei por mim no desemprego. Com mais tempo livre, fiz uma pequena formação e quando dei conta estava a fazer um curso de três anos de Escultura Cerâmica. Aí descobri outra forma de tratar a terra: uma nova forma de agricultura! (Risos). O barro ajuda-me a compreender a vida de uma forma mais íntima e plena.
APT - Nas suas obras, desenvolveu um tipo de figuração muito peculiar, podia falar um pouco sobre isso?
GL - No que diz respeito às esculturas ou desenhos figurativos, é verdade. Não é um processo consciente, é algo que está muito integrado mas que não nomeio. Sinto que a matriz sempre esteve em mim, não a vejo mas ela revela-se em cada desenho e escultura. Por vezes planeio fazer algo e depois há uma energia que se impõe e que me leva para outro lado. E assim nascem Presenças Novas, Guardiãs, Consciências Adormecidas… Vêm do silêncio e trazem consigo quietude, paz, equilíbrio, intemporalidade. Convidam-nos à observação interna, à descoberta de cada um de nós. Geralmente são figuras ligadas a um feminino mais cósmico ou a uma androgenia futura.
APT - Há portanto uma reconfiguração da forma humana feminina, nas suas obras, que lhes dão uma aparência mutante, etérea. Acredita (ou intui) que nos encontramos, enquanto civilização, nesse ponto de mutação? O que nos anunciam estas figuras?
GL - Talvez sim, mas não deixa de ser o natural processo evolutivo que me corresponde. Na verdade sempre tive tendência para formas longas e esguias. Fui-me libertando dos cânones da figura humana e da figura estereotipada da ilustração de moda e foram surgindo imagens de formas mais subtis umas vezes, mais simbólicas outras. Alguns associam-nas a África, outros ao Egipto, outros ainda ao Cosmos, com nomeações e origens específicas. Às vezes sinto que as imagens que crio sabem mais do que aquilo que posso dizer. A minha função será, portanto, trazê-las à luz para que quem as adquira ou observe possa “interagir” com elas. Vejo que estamos em mudança acelerada, mas talvez não tenhamos ampliado suficientemente a consciência para que a mutação possa acontecer. Há uma maneira viciada, condicionada, de pensar e de viver que precisa de ser terminada para que uma nova civilização se revele. Não se pode fazer a paz estando sempre a falar em guerra. E a Paz é verdadeiramente o projeto que falta realizar na terra. A matriz existe e está latente, mas pede mudanças profundas a cada um de nós… e isso pede abertura e tempo.
Entrevista de (APT) - Ana Pinheiro Torres (Revista Espaço Aberto) a Glória Lino (GL)
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