Daniel Faria

A Gnose - Uma Luz para a Humanidade

Por Daniel Faria em Maio de 2022

Tema Espiritualidade / Publicado na revista Nº 26

A DESCOBERTA DOS MANUSCRITOS DE NAG HAMMADI

Dezembro de 1945. O mundo tinha vivido nas primeiras décadas do seculo XX uma agitação sem precedentes: duas guerras mundiais, o genocídio arménio, o holocausto judeu, os terrores das ditaduras de diversas ideologias, a utilização da energia atómica recém-descoberta para fins bélicos. A humanidade estava numa situação de enorme fragilidade. 

No meio das sombras tão densas, surgiu um foco de luz e de esperança. Em dezembro de 1945, dois irmãos camponeses árabes fizeram uma descoberta surpreendente, no Alto Egito, perto da povoação de Nag Hammadi. Eles procuravam debaixo do solo fertilizantes para as suas terras. Em vez de fertilizantes, encontraram uma grande jarra com quase um metro de altura, que continha treze livros de papiro encadernados em couro dos primeiros séculos da nossa era. São os manuscritos de Nag Hammadi, que vieram trazer uma nova luz sobre a gnose e o gnosticismo.

Tratou-se de uma descoberta com repercussões profundas na trajetória espiritual da humanidade ao longo do século XX e das primeiras décadas do nosso século. 

AS IDEIAS FUNDAMENTAIS DA GNOSE

Gnose que tem como origem etimológica o termo grego gnosis, que significa "conhecimento". Com efeito, a verdadeira definição do termo "gnose" é a experiência mística do Divino diretamente em si mesmo. Consiste no conhecimento da nossa verdadeira essência, que possa ser descrita como uma experiência direta e transformadora não condicionada pelas crenças religiosas, intelectuais ou outras. Gnosticismo é a visão do mundo baseada na experiencia de gnose. 

Existe uma grande diversidade de correntes ou escolas gnósticas, mas existem aspetos comuns da maior relevância que caraterizam aquilo que chamamos de gnosticismo: 

- Acima de tudo, há uma Divindade absoluta, transcendental, eterna, infinita, ilimitada e inefável, da qual emana a pluralidade de tudo o que existe; 

O universo manifestado é o resultado de seres espirituais emanados da Divindade absoluta e transcendental, alguns dos quais trabalham pela manutenção da superatividade da humanidade em relação à Unidade Divina; 

- O ser humano é uma centelha divina emanada da Divindade, que se manifesta na matéria, sendo que a centelha divina está adormecida nas dimensões física e mental, vive na ignorância da sua essência e aspira â sua libertação; 

- Da Unidade Divina, emana um plano de salvação das centelhas divinas, que chega â humanidade através da gnose;  

- Alcançar a gnose, ou o conhecimento, é conhecer a Divindade e será o mesmo que conhecer-se, é abraçar a sua totalidade, é ao mesmo tempo estar no Divino e regressar à nossa verdadeira essência divina; 

- A libertação de nossa condição humana dá-se através da gnose, realizando a nossa verdadeira essência divina; 

- Entre os instrumentos da Unidade Divina, estão os mensageiros da Luz enviados com o propósito de promover o avanço da gnose junto da humanidade, que são os grandes mestres da sabedoria e da compaixão; 

- Para os gnósticos cristãos, o maior mensageiro da Luz foi Jesus, o Cristo, que foi mestre (ensinou o caminho da gnose) e hierofante (comunicou os mistérios e foi mediador entre o Divino e a humanidade). 

Na origem histórica das religiões, inclusive das mais importantes, existe uma fortíssima experiência gnóstica, vivenciada na sua profunda radicalidade pelos mestres inspiradores e pelos seus seguidores espiritualmente mais comprometidos.

O hinduísmo tem a sua génese nos rishis, os mestres espirituais que viviam nas montanhas e nas florestas do subcontinente indiano. O budismo parte da iluminação de Sidhartha Gautama, o Buda histórico. O judaísmo radica na revelação divina a Abraão e aos outros patriarcas, a Moisés e aos demais profetas de Israel. Com raízes no judaísmo, o cristianismo surge do encontro de Jesus, o Cristo histórico, com Deus, uma experiência espiritual singular, na medida que implica uma relação direta com o Divino, sem mediações institucionais, relação que foi valorizada pela mística cristã. O surgimento do islão radica na revelação divina a Maomé, que serviu de inspiração à mística islâmica, na qual merece destaque o sufismo.

A gnose tem um potencial especialmente poderoso na convergência das diversas tradições e experiências espirituais da humanidade.

Com efeito, a gnose define-se pela relação direta com o Divino se pode manifestar em cada um de nós. Consequentemente, a gnose é fonte inspiradora de amor incondicional, paz, compaixão, altruísmo e desapego.



O CRISTIANISMO GNÓSTICO 

Jesus foi o inspirador de uma comunidade espiritual de homens e de mulheres que se congregavam para viver a experiência do Espírito de Deus e do seu Reino.

O movimento de Jesus, no qual se baseou o cristianismo primitivo, era um movimento que radicava nos ensinamentos do mestre e na tradição judaica, embora existissem influências das filosofias estoica e cínica e da mitosofia mistérica helenística. 

As comunidades cristãs primitivas tinham uma orientação apocalítica e uma organização de tipo carismático e democrático. Por um lado, esperavam a vinda iminente do Reino de Deus no mundo. Por outro lado, eram comunidades baseadas na diversidade dos carismas e de ministérios e na igualdade entre os seus membros, incluindo entre homens e mulheres, que desempenhavam importantes responsabilidades de liderança. 

Nos primeiros três séculos da nossa era, o cristianismo teve um crescimento significativo, nomeadamente, mas não exclusivamente, no mundo mediterrânico, então dominado pelo Império Romano. 

Com efeito, o cristianismo primitivo também se expandiu para Oriente, aproveitando o conjunto de vias terrestres e marítimas englobadas sob a denominação “Rota da Seda”. Formaram-se comunidades na Mesopotâmia, na Arménia, na Pérsia e na Índia. Fora do Imperio Romano, mereceu também destaque a disseminação das ideias cristãs em países como a Núbia ou a Etiópia.  

Ao longo da História, tem havido uma enorme diversidade de interpretações da mensagem salvífica de Jesus. Daí a pluralidade interna do cristianismo no decurso do seu percurso histórico. O cristianismo primitivo era plural, existindo uma diversidade de conceções sobre a mensagem de Jesus, embora partilhassem em comum a ideia do Reino de Deus e a reverência pela figura de Jesus. 

Segundo António Piñero, um grande investigador do cristianismo primitivo, esta diversidade de opiniões pode sintetizar-se em três correntes principais.

A primeira era composta fundamentalmente de judeus, os sucessores dos que haviam seguido mais de perto Jesus em vida. Enfatizavam a natureza humana de Jesus, como filho de Maria e José, e viam nele como o Messias, o enviado de Deus, junto do povo de Israel e da humanidade em geral. 

A segunda corrente era formada sobretudo por antigos pagãos convertidos à fé cristã seguindo as orientações de Paulo de Tarso, mais conhecido como São Paulo. A sua crença distintiva fundamental consistia em que Jesus tinha aceitado a sua própria morte, decidida por Deus, como um sacrifício necessário para eliminar os pecados contra Deus, não somente do povo judeu, mas da humanidade no seu todo. Tendiam a valorizar a divindade de Jesus em detrimento da sua humanidade. Esta corrente era a mais forte e a melhor organizada.

Mas havia um terceiro grupo, no qual participavam judeus e pagãos. Os seus membros sustentavam tinham um conhecimento secreto, ou seja, a gnose, graças à qual conseguiriam uma salvação plena e absoluta.

António Piñero refere-se às três grandes correntes ou ramificações do cristianismo primitivo: os judeo-cristãos, os cristãos proto-ortodoxos e os cristãos gnósticos. A designação proto-ortodoxo, a utlizada por diversos autores é utlizada pelo facto da ortodoxia ter sido definida como tal somente nos concílios dos séculos IV e V, quando as demais correntes foram consideradas como heterodoxas ou heréticas.  

 Na perspetiva de Elaine Pagels, uma das principais investigadoras dos manuscritos do cristianismo gnóstico, podemos mencionar as principais caraterísticas distintivas entre os cristãos proto-ortodoxos e os cristãos gnósticos. 

Em primeiro lugar, os cristãos proto-ortodoxos enfatizam a existência de uma separação entre Deus e a Humanidade. Deus é considerado como totalmente outro e transcendente. Por seu turno, os gnósticos consideram que o autoconhecimento é o conhecimento do Divino. 

Em segundo lugar, o Jesus dos manuscritos gnósticos fala sobretudo de ilusão e iluminação, e não de pecado e expiação, referidos no Novo Testamento. 

Em terceiro lugar, os proto-ortodoxos acreditam em Jesus como o Filho de Deus de forma impar e exclusiva, separado do resto da humanidade que veio salvar. Os gnósticos consideram Jesus como como um guia ou mestre espiritual que abre acesso ao conhecimento espiritual. Quando o discípulo alcança a iluminação, ele torna-se igual ao mestre.

O papel dos mensageiros espirituais, entre os quais Jesus tinha um lugar de destaque, era curar a humanidade da sua ignorância, através do acesso à gnose ou conhecimento espiritual.

À semelhança de diversos autores, Elaine Pagels nota que o ensinamento cristão gnóstico, baseado na identidade entre o Divino e o humano, no foco pela ilusão e pela iluminação e na conceção de Jesus como guia espiritual, tem uma clara ressonância de cariz budista e hindu. 

Elaine Pagels constata que budistas estiveram em contacto com os cristãos de Tomé (isto é, cristãos que conheciam e usavam escritos como o Evangelho de Tomé) na Índia meridional. Na altura em que o gnosticismo floresceu (60-200 d.C.), estavam abertas as rotas comerciais entre o mundo greco-romano e o Extremo Oriente e a presença de missionários budistas era notória em Alexandria, a grande metrópole do Egito, que era a ponte principal entre o Ocidente e o Oriente. Hipólito, um cristão de língua grega residente em Roma na primeira metade do século III, fala dos brâmanes indianos e refere a influência destes nas fontes do gnosticismo.  

Os cristãos gnósticos influenciaram de forma determinante o cristianismo, tal como hoje o conhecemos, por duas grandes razões. 

Por um lado, conforme assinala António de Macedo, um grande investigador português na área da espiritualidade, os cristãos gnósticos lançaram os fundamentos de uma escola iniciática de mistérios cristãos, de vastas repercussões históricas e sociológicas, ramificando-se ao longo de toda a Idade Média, do Renascimento e da modernidade, segundo escolas, tradições e correntes tão diversas como o maniqueísmo, o hermetismo neo-alexandrino, o catarismo, o templarismo, a filosofia oculta de Agripa, o trovadorismo iniciático, a cabala crista, a teosofia cristã dos séculos XIV a XVIII (Eckhart, Nicolau de Cusa, Paracelso, Giordano Bruno, Jacob Böhme, Johann Georg Giebrel, Emanuel Swedenborg, Karl von Eckhartshausen, etc.), o rosacrucianismo, a maçonaria, o neo-ocultismo novecentista, a teosofia de Helena Blavatsky e as correntes dela derivadas, entre outras, sem falar na variedade imensa de todos os movimentos e sub-movimentos New Age.

Por outro lado, os gnósticos foram os alvos privilegiados dos proto-ortodoxos, que sistematizaram uma cultura cristã proto-ortodoxa que se disseminou e se impôs no cristianismo institucional.




Segundo Pagels, o triunfo da corrente proto-ortodoxa deveu-se sobretudo à sua capacidade organizativa: na formação do cristianismo surgiram conflitos entre aquelas pessoas inquietas e inquiridoras que exploravam uma senda solitária de autodescoberta e a estrutura institucional, que conferia sanção religiosa à grande maioria e direção ética às suas vidas quotidianas. Adaptando aos seus próprios fins o modelo romano de organização militar e política e, ganhando apoio imperial no século IV, o cristianismo proto-ortodoxo, cresceu, tornando-se cada vez mais estável e duradouro. O cristianismo gnóstico provou não ser rival para a fé ortodoxa, tanto em termos de atração popular, como da sua organização efetiva.

No século II, começou a ser estabelecido um episcopado monárquico, baseado numa hierarquia de três níveis: bispos, presbíteros e diáconos. Este modelo organizacional, iniciado em Antioquia, tornou-se predominante nas comunidades gentio-cristãs de inspiração paulina e nas comunidades cristãs em geral. Paralelamente, na sequência das duas destruições de Jerusalém, em 70 e em 135, a igreja de Roma, vai reivindicando gradualmente um primado, inicialmente honorifico, sobre as demais comunidades, aproveitando a condição de capital imperial e a sua forte dinâmica caritativa. 

Nos primeiros três séculos, a generalidade dos pensadores cristãos aderiram de forma clara à fé na unidade de Deus, sempre subordinando Jesus, o Cristo histórico, ao Deus uno.

Mas, no concílio ecuménico de Niceia, em 325, convocado pelo imperador romano Constantino I, foi aprovado oficialmente o dogma da Trindade e a igualdade de Jesus com Deus. 

O desfecho do concílio de Niceia radicou na falta de compreensão de que Jesus e Cristo são realidades diferentes e não uma entidade única.

Cristo é a Luz Divina que permeia tudo o que existe. Jesus acolheu a Consciência Crística em plenitude, mas não é o Cristo Cósmico. A Consciência Crística infundiu-se em Jesus, tornando-o Jesus, o Cristo, da mesma forma que noutros grandes mestres espirituais da humanidade e que todos nós somos convidados a manifestar. 

Este princípio cósmico pode manifestar-se num ser humano preparado para o receber, como foi o caso de Jesus. Por outro lado, um ser humano, por mais excecional que seja, não pode ser a única manifestação do Divino. 

As consequências do concílio de Niceia e da fórmula dogmática aí aprovada, que foi reafirmada pelos concílios ecuménicos posteriores, para o cristianismo e a humanidade, foram enormes. A fé deixou de ser vista como uma relação de confiança e de entrega ao Divino, passando a ser encarada como a adesão incondicional a um conjunto de dogmas doutrinários cada vez mais complexos. Os judeo-cristãos, os gnósticos e todos os demais cristãos que não compartilhavam esta visão dogmática foram excluídos e perseguidos. Para os judeus, e posteriormente, para os muçulmanos e os seguidores de outras tradições espirituais em geral, a fórmula dogmática definida em Niceia permaneceu incompreensível.

A GNOSE E A CRÍTICA DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ OCIDENTAL  

Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica e um dos grandes iniciados do século XX, que sentia uma profunda conexão com o gnosticismo, criticou a espiritualidade cristã ocidental, que considera como essencialmente externa. 

Na perspetiva de Jung, o Ocidente cristão considerou o ser humano plenamente dependente da graça divina, ou, pelo menos, da instituição eclesial considerada como instrumento tendencialmente exclusivo de mediação da Divindade para a salvação humana. A responsabilidade é assim afastada para o exterior. Por seu turno, o Oriente insiste que o ser humano é a causa por excelência do seu desenvolvimento superior, pois acredita na auto-libertação.

Abraham Maslow, discípulo de Jung e fundador da psicologia transpessoal, contemplando a história interna da generalidade das religiões mundiais, constata a existência de duas alas nas diversas cosmovisões religiosas. 

Por um lado, existem os místicos e os seres humanos pessoalmente espirituais, que enfatizam a dimensão mística e esotérica da espiritualidade, e por outro lado, existem as pessoas que estão ligadas a uma compreensão literalista e dogmática da espiritualidade e consideram as instituições religiosas como essenciais e mais importantes do que as revelações espirituais originais. 

É legítimo questionar-se o que teria acontecido se tivesse prevalecido a visão gnóstica da realidade. Provavelmente, teríamos um cristianismo menos dogmático, mais recetivo ao contexto multirreligioso existente nos primeiros séculos da nossa era, mais plural, mais centrado na dimensão mística e interior da espiritualidade e consequentemente mais consentâneo com a mensagem de amor, paz e compaixão proclamada e praticada por Jesus. Por outras palavras, uma ortopraxia em vez de uma ortodoxia. 

Por seu turno, esta extroversão que se polariza com o cristianismo institucional teve um impacto profundo na trajetória do Ocidente e da humanidade em geral. O inconsciente coletivo, desprovido de luz, voltou-se sobre o mundo de forma não raras vezes desconectada e violenta. 

Os traumas da modernidade deixaram uma pesada herança espiritual e ética. Contudo, a atual época de transição planetária e cósmica abre perspetivas para uma busca interior revigorante e para um encontro com a nossa essência mais profunda, em conexão intima com o Todo que é a fonte infinita da qual emana tudo o que existe. 

Daniel José Ribeiro de Faria 






ARTIGO SUGERIDO

O Prazer de um Chá

O Prazer de um Chá

Janani Elisabete
Por Janani Elisabete em Agosto 2020
Tema Saúde Natural / Publicado na revista Nº 16

Quente ou frio, o chá é uma boa ideia para um convívio de amigos,  como companheiro de um bom livro, ou como um remédio natural para o nosso ...
Ler mais