Daniel Faria

YESHUA: em busca do Jesus Histórico

Por Daniel Faria em Dezembro de 2021

Tema Espiritualidade / Publicado na revista Nº 24

Jesus, cujo nome original era Yeshua, é indiscutivelmente uma das figuras mais marcantes da jornada espiritual da humanidade.

À medida que o cristianismo, na diversidade das suas formas, se disseminou, Yeshua começou a ser conhecido pelo nome grego Iesous. Nos primeiros seculos da era comum, o grego era a língua internacional por excelência no mundo mediterrânico. Posteriormente, Iesous foi latinizado para Iesus, donde deriva o português Jesus. 

Cristo é um termo que deriva da palavra grega Khristós, que significa “ungido” ou “consagrado”. Por sua vez, a palavra grega é uma tradução do termo hebraico Māšîaḥ, transliterado para o português como Messias. Portanto, o título Cristo confere uma perspetiva espiritual à figura histórica de Jesus. 

A investigação dos últimos séculos sobre o Jesus histórico tem promovido um conhecimento cada vez mais profundo sobre a sua vida e a sua presença crucial na História.

Atualmente, cerca de um terço dos seres humanos do nosso planeta dizem-se cristãos. Além disso, existem pessoas de outras religiões e inclusive sem identidade religiosa que admiram a sua vida e mensagem, embora não se reconheçam no cristianismo. A sua figura foi de tal modo determinante que a História se dividiu em antes e depois de Cristo.

AS FASES DA PESQUISA DO JESUS HISTÓRICO

Durante muito tempo, Jesus não foi estudado como uma figura histórica no sentido moderno do termo. Por um lado, os cristãos consideravam os evangelhos canónicos (Marcos, Mateus. Lucas e João) como relatos factuais por excelência da sua vida. Por outro lado, a generalidade dos não cristãos não expressavam muito interesse pela sua figura.

O desenvolvimento da história como ciência foi um aspeto muito relevante da modernidade, sobretudo a partir do século XVIII. Foi neste contexto que surgiu a busca do Jesus histórico, sendo possível distinguir três grandes etapas ou fases.

A primeira fase

A primeira fase teve lugar nos séculos XVIII e XIX, merecendo realce o papel de autores como Hermann Reimarus, Friedrich Strauss e Ernest Renan. As suas caraterísticas marcantes foram as seguintes:

– A interpretação dos evangelhos de acordo com o paradigma do autor (Jesus poderia ser considerado como um reformador religioso e social, no caso de Reimarus, ou um mestre da sabedoria e defensor da dignidade humana, segundo Renan); 

– O ceticismo em relação às narrativas bíblicas relativas à presença do sobrenatural.

No início do século XX, Albert Schweitzer e Rudolf Bultmann expressaram reservas em relação à possibilidade de conhecer o Jesus histórico, considerando que o Novo Testamento era sobretudo um testemunho de fé das primeiras comunidades.

A segunda fase 

A segunda fase começou no início da década de 1950, sob o impulso de Ernest Käsemann, que criticou Bultmann, considerando que existia uma ligação entre a compreensão do mistério da Páscoa pelas comunidades e o conhecimento da vida terrena de Jesus. Nesta segunda fase, destacaram-se, entre outros, Charles Dodd, Günther Bornkamm. Jacques Dupont, James Robinson e Joachim Jeremias.

Os principais contributos desta fase foram os seguintes:

– O Novo Testamento transmite-nos mais a fé das comunidades primitivas do que a biografia do Jesus histórico;

– A singularidade de Jesus distingue-o do seu contexto judeu e das comunidades pós-pascais;

– O centro da vida e da mensagem de Jesus foi a proclamação do Reino de Deus.

A terceira fase

A partir do início da década de 1980, emergiu a terceira fase da demanda, que tem uma grande pluralidade de autores, como Ed Sanders, Elaine Pagels, Geza Vermes, John Dominic Crossan e Marcus Borg, entre muitos outros.

No âmbito desta terceira fase, mereceu destaque o Jesus Seminar, um projeto coletivo de investigação fundado em 1985 por Robert Funk, que chegou a superar a fasquia de 200 investigadores. Este projeto tinha como finalidade avaliar o grau de autenticidade dos ditos e atos do Jesus histórico, tendo considerado que Jesus era um mestre de sabedoria, não preocupado em fundar uma nova religião, que tinha uma visão amorosa de Deus e comprometido com o melhoramento e a transformação da vida e da realidade. 

Esta fase tem tido as seguintes caraterísticas;

– A ênfase na interdisciplinaridade, promovendo o contributo de outras ciências, como a antropologia, a sociologia e a linguística;

– O reforço do conhecimento da vida terrena de Jesus e do seu contexto espácio-temporal;

– A redescoberta e a valorização do judaísmo de Jesus; 

- A apreciação da ligação de Jesus com uma tradição mais ampla de sabedoria empenhada na transformação da vida e da realidade. 



AS FONTES 

A História é feita através de fontes ou documentos. A investigação histórica passa por documentos, que são testemunhos de cariz material ou imaterial produzidos pelos seres humanos ao longo dos tempos. A própria palavra fonte é uma metáfora, comparando os documentos à água que sacia a necessidade vital de beber.

No caso concreto de Jesus, existem atualmente diversos tipos de documentos escritos sobre a sua vida e a sua época: as fontes cristãs, as fontes judaicas e as fontes pagãs. 

Para além dos documentos escritos, tem sido feita uma investigação arqueológica que tem contribuído para um conhecimento cada mais ampla da época de Jesus. 

As fontes cristãs

Entre as fontes cristãs, podem ser distinguidas as fontes canónicas, as fontes apócrifas e as fontes patrísticas.

As fontes canónicas são os 27 livros do Novo Testamento, que foram selecionadas pelo cristianismo institucional- A palavra cânone deriva da palavra grega kanôn, que significa “cana” e analogicamente regra ou medida. Os livros do Novo Testamento, juntamente com as Escrituras judaicas, também conhecidas como Antigo Testamento, formam a Bíblia cristã.

As fontes apócrifas são os documentos cristãos que o cristianismo institucional não admite no cânone bíblico. A palavra apócrifo tem igualmente uma origem grega, significando “oculto” ou “mantido em segredo”. Este termo tem uma clara ressonância iniciática ou esotérica. As fontes apócrifas estão ligadas a linhagens cristãs que foram colocadas de parte pelo cristianismo institucional, nomeadamente o judeo-cristianismo (Evangelho dos Hebreus, Evangelho dos Nazarenos, Evangelho dos Ebionitas, etc.) e o gnosticismo cristão (Evangelho de Tomé, Evangelho de Maria Madalena, Pistis Sophia, etc.).

As fontes patrísticas são as obras dos grandes escritores cristãos do cristianismo primitivo, a fase histórica correspondente aos quatro primeiros séculos do cristianismo. Esta categoria de fontes também engloba obras doutrinais desta época, como por exemplo a Didaqué, também conhecida como a Instrução dos Apóstolos, datada do século I. 

As fontes judaicas 

Flávio Josefo, escritor e historiador judeu do século I (37-100), refere-se não somente a Jesus, mas também a duas personagens do Novo Testamento, mais concretamente João Baptista e Tiago, irmão de Jesus. 

Ele evoca Jesus acerca da execução do seu irmão Tiago, líder da comunidade judeo-cristã de Jerusalém, condenado à morte pelo sinédrio judaico em 62, uma decisão que motivou uma grande consternação não apenas nos judeo-cristãos, mas também em setores amplos da população judaica de Jerusalém. 

Existe outro testemunho sobre Jesus, que foi objeto de retoques por escritores cristãos posteriores. Contudo, atualmente, é possível fazer a reconstituição do texto original, na qual refere-se a Jesus como “homem sábio”, à pregação, à condenação à morte e à existência de um movimento de discípulos durante e após a sua vida terrena.  

O Talmude judaico de Babilónia, datado do século II, faz alusão à morte de Jesus na proximidade da Pascoa judaica, correspondendo ao que é descrito no Novo Testamento. 

As fontes pagãs 

Mara bar Serapião, um filósofo da Síria romana, que viveu na segunda metade do século I, numa carta ao seu filho Serapião, faz uma referência interessante à morte do “rei sábio dos judeus”, comparando-a à morte de Pitágoras e de Sócrates. Como é sabido, Jesus foi condenado com a acusação de ser um pretendente messiânico ao trono de Israel. O Novo Testamento refere que o letreiro da cruz de Jesus menciona-o como “rei dos judeus.”

Em 112, Plínio, o Jovem (61--114), governador romano da Bitínia (atual noroeste da Turquia), na sua correspondência ao imperador Trajano, refere-se a Cristo quando o informa das decisões contra os indivíduos acusados de serem cristãos. 

O historiador romano Tácito (56-120) menciona na sua obra o incêndio de Roma, em 64. Para se livrar de qualquer suspeita, o imperador Nero, cada vez mais autocrático, responsabilizou os cristãos pela tragedia na capital imperial. Tácito explica que a denominação de cristãos deriva de Cristo, que foi executado por ordem do prefeito romano da Judeia, Pôncio Pilatos, no tempo do imperador Tibério.

Suetónio (69-141) refere-se à expulsão dos judeus de Roma pelo imperador Cláudio cerca do ano 50, que é referida também nos Atos dos Apóstolos, um dos principais livros do Novo Testamento. O autor romano refere como causa da expulsão a agitação provocada pelo incitamento de Cresto (possível transcrição latina do grego Christós). Geralmente, considera-se que esta decisão imperial foi motivada por um conflito no âmbito da população judaica de Roma, no qual os judeo-cristãos tiveram um papel relevante. 

Existem autores pagãos mais tardios que se referem a Jesus. Pode ser mencionado o caso de Amónio Sacas (175-242), geralmente considerado como o precursor de neoplatonismo e professor de Plotino e Orígenes. Amónio, que tinha uma visão universalista da espiritualidade, referia-se a Jesus como um homem excelente e amigo do Divino. 



~O QUE PODEMOS SABER DE FORMA FIÂVEL SOBRE O JESUS HISTÓRICO?

Atualmente, devido ao desenvolvimento da investigação efetuada, a identidade de Jesus como figura histórica está largamente comprovada e pode-se sintetizar os seguintes fatores fidedignos, do ponto de vista estritamente histórico: 

- O seu nome era Yeshua; 

- Era judeu e viveu em Israel; 

- Nasceu no reinado de Herodes, o Grande, o monarca que governava Israel como vassalo de Roma, 

- Os seus pais eram Maria e José e cresceu numa família numerosa com irmãos e irmãs, na qual se cultivava com uma espiritualidade muito devota;  

- Foi influenciado e batizado por João Baptista; 

- Formou um movimento de discípulos e discípulas; 

- Dedicou-se à pregação do Reino de Deus e à cura; 

- Limitou essencialmente a sua atividade a Israel, embora anunciasse a salvação para todos os povos; 

- Teve controvérsias sobre o papel do Templo de Jerusalém e a inclusão de pessoas pobres e oprimidas da sociedade e do seu tempo; 

- Fez uma última refeição ritual com os seus discípulos mais próximos; 

- Foi detido pelas autoridades judaicas e crucificado pelas autoridades romanas;

- Após a sua morte, os seus seguidores afirmaram que Jesus estava vivo e continuaram a desenvolver um movimento identificável. 

Portanto, existe um conjunto de informações históricas sobre Jesus, ou melhor, Yeshua, um grande mestre de sabedoria, que apresentou uma mensagem focada na proclamação do Reino de Deus como Fonte Infinita da Vida e do Amor, e cuja vida e legado manifestam o elevado potencial intrínseco a todos os seres humanos. 

Daniel Faria


BIBLIOGRAFIA: 

BORGES, Anselmo (coord.), Quem foi? Quem é Jesus Cristo? Lisboa, Gradiva, 2012. 

CHENU, Bruno Chenu e NEUCH, Marcel, Deus no Século XXI, Lisboa, Edições Piaget, 2004.

DIEZ, Felicísimo Martinez, Crer em Jesus Cristo, Viver como Cristão: Cristologia e seguimento, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2007. 

DUSQUENE, Jacques, Jesus, Lisboa, Círculo de Leitores, 1997. 

KÜNG, Hans, Cristianismo: Essência e História, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2012.

KÜNG, Hans, Religiões do Mundo: em busca dos pontos comuns, Lisboa, Editora Multinova, 2005.

QUESNET, Michel, Jesus Cristo, Lisboa, Edições Piaget, 1995. 

SLAVENBURG, Jacob, A Herança Perdida de Jesus, Lisboa, Marcador, 2012.

SVENTSÍTSKAIA, Irina; Os Primeiros Cristãos: Páginas de Historia, Lisboa, Editorial Caminho, 1989. 

TAMAYO; Juan José (org.), Novo Dicionário de Teologia, São Paulo, Paulus, 2009.

VIGIL, José Maria, Uma Teologia do Pluralismo Religioso: para uma releitura pluralista do cristianismo, São Paulo, Paulus, 2006.










ARTIGO SUGERIDO

HIPNOTERAPIA em tempos de  COVID -  19

HIPNOTERAPIA em tempos de COVID - 19

Alexandra Martins
Por Alexandra Martins em Abril de 2020
Tema Saúde Natural

A vida está suspensa, quando afirmávamos não se poder parar, que era assim, a correria, o dia a dia, as exigências, e que nada mudaria. A vida está suspensa à espreita do vazio, do ...
Ler mais