Daniel Faria

O outro Valentim : O grande místico da Gnose

Por Daniel Faria em Fevereiro de 2023

Tema Espiritualidade / Publicado na revista Nº 31

Em 14 de fevereiro, assinala-se o dia de São Valentim, padroeiro dos namorados e das namoradas, o que constituiu a base da celebração do Dia dos Namorados, que se comemora atualmente a nível mundial. 

De acordo com a tradição cristã católica, Valentim viveu na época do imperador romano Cláudio II, no século III. Este imperador, com o propósito de formar um exército imperial poderoso e numeroso, interditou a celebração de novos casamentos. O monarca considerava que os jovens que não tinham esposa iriam alistar-se no exército imperial com mais facilidade. Valentim, um sacerdote cristão, continuou a abençoar casamentos, em nome do ideal da sacralidade do amor. Contudo, foi detido, condenado à morte e executado no dia 14 de fevereiro de 270. 

Mas existe outro Valentim, que foi uma das mais brilhantes figuras do cristianismo primitivo.





UMA VIDA FASCINANTE 

Valentim foi um místico cristão do século II, que nasceu por volta do ano 100, na antiga cidade de Phragonis, na proximidade da atual Tidah, no Egito, território então parte integrante do Império Romano. 

É da maior relevância ter em conta que o cristianismo na época de Valentim era plural, existindo uma diversidade de conceções sobre a mensagem de Jesus, embora partilhassem em comum a ideia do Reino de Deus e a reverência pela figura de Jesus.

Segundo António Piñero, um dos principais investigadores do cristianismo primitivo da atualidade, esta diversidade pode sintetizar-se a três correntes principais.

A primeira corrente era estava composta fundamentalmente de judeus, os sucessores dos que haviam seguido mais de perto Jesus em vida. Enfatizavam a natureza humana de Jesus, como filho carnal de Maria e José, e viam nele como o Messias, o enviado de Deus, junto do povo de Israel e da humanidade em geral.

A segunda corrente era formada sobretudo por antigos pagãos convertidos à fé cristã seguindo as orientações de Paulo de Tarso, mais conhecido como São Paulo. A sua crença distintiva fundamental consistia em que Jesus tinha aceite a sua própria morte, decidida por Deus, como um sacrifício necessário para eliminar os pecados contra Deus, não somente do povo judeu, mas da humanidade no seu todo. Tendiam a valorizar a divindade de Jesus em detrimento da sua humanidade, vendo nele o Filho de Deus de forma impar e exclusiva, separado do resto da humanidade que veio salvar. Esta corrente era a mais forte e a melhor organizada. Na historiografia atual, esta corrente é chamada de proto-ortodoxa.  

Mas havia um terceiro grupo, no qual participavam judeus e pagãos. Os seus membros sustentavam que o acesso ao conhecimento secreto, ou seja, a gnose, era essencial para uma salvação plena. A sua visão espiritual baseava-se na identidade entre o divino e o humano, no foco pela ilusão e pela iluminação e na conceção de Jesus como grande mestre espiritual que abre acesso ao conhecimento espiritual. Quando o discípulo alcança a iluminação, ele torna-se igual ao mestre.

Valentim recebeu a sua formação em Alexandria, uma das maiores metrópoles do mundo de então e a segunda maior cidade do Império Romana, tendo uma população de um milhão de habitantes,  

Alexandria era uma metrópole onde confluíam pessoas de todas as culturas e de todas as correntes religiosas e filosóficas do Oriente e do Ocidente. Era prestigiada pela Biblioteca, pelo Museu, um grande centro filosófico e científico, e pelos seus templos. Era também um centro da maior importância para o judaísmo e o cristianismo. Em Alexandria, localizava-se a maior comunidade judaica fora da terra bíblica de Israel, na qual foi feita a tradução das Escrituras Hebraicas (o Antigo Testamento) da língua original para o grego, então a língua internacional por excelência. Alexandria acolhia também uma comunidade cristã forte e vigorosa, merecendo destaque a célebre Escola Catequética de Alexandria, porventura o principal centro de pensamento teológico do cristianismo dos primeiros séculos. 

Em Alexandria, Valentim teve a oportunidade de conhecer o pensamento do filósofo gnóstico Basilides, a cultura dos judeus helenizados, seguidores do grande filósofo judeu Fílon de Alexandria, e o pensamento teosófico de Amónio Sacas, um ilustre filósofo neoplatónico que tinha uma visão universalista da espiritualidade, que teve entre os seus discípulos Plotino, Longino e dois Orígenes, um pagão e outro cristão, que foi um dos principais pensadores do cristianismo primitivo. 

Quando alcançou a idade adulta, Valentim tomou a opção de residir em Roma, a grande capital imperial. Na sequência das duas destruições de Jerusalém, em 70 e em 135, a igreja de Roma, foi reivindicando gradualmente um primado, inicialmente honorífico, sobre as demais comunidades cristãs, aproveitando a condição de capital imperial e a sua forte dinâmica caritativa.

 Dotado de uma capacidade espiritual e intelectual notável, Valentim rapidamente alcançou um elevado lugar de proeminência na comunidade cristã da capital imperial.

Quando faleceu o bispo de Roma, Higino, no ano 140, Valentim, já então com grande prestígio, foi um candidato forte à sua sucessão, tendo perdido a eleição por uma escassa margem, ultrapassado por Pio, que se tinha destacado na defesa do cristianismo primitivo contra a prepotência das autoridades romanas. 

Infelizmente, uma vez eleito, Pio mostrou uma faceta autoritária e dogmática que não foi bem acolhida por uma grande parte da comunidade cristã de Roma. 

Por volta de 160, Valentim deixou Roma e deslocou-se para o Oriente, tendo estado em Chipre e Alexandria, prosseguindo o desenvolvimento e a divulgação do seu sistema de filosofia espiritual de inspiração gnóstica, tendo mantido o seu prestígio junto das comunidades cristãs primitivas. 

Como muitos dos mestres do gnosticismo cristão e do cristianismo primitivo em geral, Valentim foi instruído por um mestre, com base na relação mestre – discípulo. No caso concreto de Valentim, o mestre terreno foi Teudas, discípulo de São Paulo, o que o liga aos fundadores do movimento de Jesus.

UM MOMENTO CRUCIAL DE VIRAGEM 

Valentino, o gnóstico que quase se tornou bispo de Roma, foi, portanto, um líder que obteve um reconhecimento amplo para a abordagem gnóstica da mensagem de Jesus.

O facto de Valentim não ter sido eleito bispo de Roma, juntamente com a influência crescente da corrente proto-ortodoxa, que preconizava uma visão dogmática literalista do cristianismo, pode ser considerado uma das maiores tragédias da história do cristianismo e da espiritualidade humana em geral.

Com efeito, vários estudiosos, entre os quais Elaine Pagel, Gilles Quispel, Hans Kung, Jacob Slavenburg,, Marília Fiorello e Stephan A. Hoeller, veem neste acontecimento um ponto de viragem fundamental no percurso histórico do cristianismo, com profundas repercussões na História da humanidade em geral.

Será interessante fazer um exercício de História contrafactual. O que teria acontecido se Valentim tivesse sido eleito bispo de Roma? 

Provavelmente, teríamos um cristianismo menos dogmático, mais recetivo e acolhedor com a diversidade multirreligiosa existente nos primeiros séculos da nossa era, mais plural, mais centrado na dimensão mística e interior da espiritualidade e consequentemente mais consentâneo com a mensagem de amor, paz e compaixão proclamada e praticada por Jesus. Em suma, uma ortopraxia em vez de uma ortodoxia.

Valentim foi contemporâneo de Antonino Pio, um dos imperadores mais sábios e competentes da história do Império Romano, que valorizava na sua governação os valores éticos e cívicos. Na medida que promovia uma visão não exclusivista do cristianismo e da espiritualidade em geral, Valentim, caso tivesse sido eleito bispo de Roma, poderia ter convencido Antonino Pio a conceder a liberdade religiosa aos cristãos. 

Além disso, Valentim teria considerado a pluralidade interna como um fator de enriquecimento espiritual do cristianismo. 

Reconhecendo a diversidade de caminhos levam ao conhecimento do Divino, Valentim também teria promovido o diálogo e o encontro com os judeus e os pagãos. Um diálogo baseado na compreensão dos valores universais, que emanam de uma fonte mais profunda. Um diálogo baseado na autenticidade interior e na abertura recíproca.  

Relativamente aos judeus, teria refutado a ideia da responsabilidade coletiva do povo judeu na morte de Jesus, considerando-a como o resultado trágico de um processo no qual intervieram a aristocracia sacerdotal e as autoridades romanas e que a vida de Jesus inseria-se num plano divino mais amplo de reconciliação da humanidade consigo mesma.  

Em relação aos pagãos, teria promovido com o diálogo com as correntes espiritualistas e filosóficas da Antiguidade, como o neoplatonismo e o estoicismo. 

A COSMOVISÃO ESPIRITUAL DE VALENTIM 

Valentim considerava que existiam dois tipos de ensinamentos de Jesus: 

- Os ensinamentos exotéricos, baseados em parábolas e em transmitidos aos diversos públicos com os quais Jesus interagiu; 

- Os ensinamentos esotéricos, transmitidos ao círculo interno dos discípulos e discípulas, 

É evidente que o grande mestre tinha dois círculos distintos de instrução. Um de profanos e outro de discípulos mais comprometidos. Este círculo não se limitava ao grupo dos denominados 12 apóstolos, mas abrangia 120 discípulos de ambos os sexos, um aspeto revolucionário para a época, e os seus parentes mais próximos, nomeadamente a sua mãe, Maria, e os seus irmãos e irmãs. 

Existem referências a este círculo mais interno nos Evangelhos inseridos no Novo Testamento (Marcos 4,11-12; Mateus 13,10-17; Lucas 8, 9-10; Lucas 10:1) e nos Atos dos Apóstolos (Atos 1, 13-14)

Quando Paulo conectou-se com o Jesus ressuscitado através de experiências visionárias, ele recebeu os ensinamentos secretos dele. Valentim disse que aprendeu os ensinamentos secretos de Jesus com Teudas, discípulo de Paulo. 

De acordo com a tradição valentiniana, os ensinamentos secretos de Jesus só eram partilhados com as pessoas que eram espiritualmente maduras. 

O Divino 

Na visão de Valentim, há uma Divindade absoluta, transcendental, eterna, infinita, ilimitada e inefável, da qual emana a pluralidade de tudo o que existe. 

Os valentinianos acreditavam que a Divindade manifesta é andrógina e frequentemente o descreviam como uma díade masculino-feminino. 

O aspeto masculino do Divino é a Profundidade, também chamado de Inefável e Primeiro Pai. A Profundidade é o aspeto profundamente incompreensível e abrangente da Divindade.

O aspeto feminino do Divino é chamado de Silêncio, Graça e Pensamento, entre outras denominações. O Silêncio é o estado primordial de tranquilidade e autoconsciência do Deus. Ele também é o Pensamento criativo e ativo que torna todos os estados subsequentes de ser (ou "Éons") substanciais.

Segundo Valentim, do amor eterno entre os aspetos masculino e feminino da Divindade, emana um terceiro aspeto, que é o Filho. Como manifestação da Divindade, o Filho é igualmente empreendido como uma díade masculino-feminino. 

A génese e a evolução do Cosmos é descrita como um processo de emanação da Divindade. 

O Filho manifesta-se nos Éons, que são seres deíficos intermediários que existem entre o Deus absoluto supremo e o universo material. Eles, junto com o Deus verdadeiro, compreendem o reino da Plenitude (Pleroma), no qual a potência da Divindade atua plenamente.  Os Éons estão organizados em pares masculino-feminino, que são chamados de sizígias.  

Um dos seres deíficos que leva o nome de Sophia (“Sabedoria”) é de grande importância para a compreensão da visão valentiniana. 

No âmbito do seu percurso, Sophia veio a emanar de seu próprio ser uma consciência imperfeita, um ser que se tornou o criador do Cosmos material e psíquico, o qual ele criou à imagem de sua própria imperfeição. Este ser, inconsciente de suas origens, imaginou-se como o Deus supremo e absoluto. Este ser é denominado como Demiurgo e os seus auxiliares são designados como Arcontes.

A condição humana 

Valentim acreditava que o ser humano era composto por três grandes elementos: um corpo físico (soma), uma alma racional (psique) e uma centelha espiritual (pneuma). 

Como místico que era, Valentim enfatizava a centelha divina no interior de cada ser humano, que se despertava pela ressurreição do ser crístico no próprio interior e assim abria o caminho para uma vida nova baseada no amor à Divindade e ao próximo.

Valentim pregava que o ser humano era imortal, porque a sua parte espiritual estava ligada ao Espírito Divino. 

Classificava os seres humanos em três grandes categorias, de acordo com o seu grau de evolução espiritual: 

- Os hílicos, indivíduos materialistas, demasiado focados nas coisas materiais; 

- Os psíquicos, que procuravam sinceramente a revelação da fé, que procuravam viver de acordo com as prescrições das comunidades eclesiais e não tinham acesso à gnose; 

- Os pneumáticos, os seres humanos que vivenciavam as verdades eternas através da gnose, e como tal, tinham alcançado a união com o Divino, que vibrava no seu próprio ser. 

Na visão antropológica de Valentim, Adão e Eva, metaforicamente os primeiros seres humanos, são descritos como tendo três filhos que chamaram de Caim, Abel e Seth. Eles são os protótipos dos seres humanos carnais (hílicos), animados (psíquicos) e espirituais (pneumáticos), respetivamente.

Contrariamente a alguns pensadores cristãos do seu tempo, inclusive gnósticos, Valentim defendia que o lugar do ser humano era estar presente no mundo, sem no entanto estar dependente das suas ilusões. A conceção de que o ser humano vive num mundo de ilusão, do qual somente o conhecimento da gnose ou autoconhecimento pode libertá-lo, tem fortes analogias com as ideias das grandes tradições espirituais do Oriente, nomeadamente o hinduísmo e o budismo.





A salvação 

Na perspetiva de Valentim, alcançar a gnose, ou o conhecimento, é conhecer a Divindade e será o mesmo que conhecer-se; é abraçar a sua totalidade e ao mesmo tempo estar em Deus; regressar à nossa verdadeira essência divina. 

A salvação libertadora de nossa condição humana dá-se através desse conhecimento, e do regresso à nossa verdadeira essência divina. 

Neste contexto, merece ênfase o papel fundamental dos mensageiros da Luz Desde os tempos mais antigos, foram enviados mensageiros com o propósito de promover o avanço da gnose junto da humanidade, que são os grandes mestres da sabedoria e da compaixão. 

Para Valentim, o maior mensageiro da Luz foi Jesus, que foi mestre (ensinou o caminho da gnose) e hierofante (comunicou os mistérios e foi mediador entre o Divino e a humanidade).

Na perspetiva de Valentim, a gnose não se baseia na salvação do pecado (original ou outro), mas sim da ignorância de que o pecado é uma consequência. A ignorância, mais concretamente a ignorância das realidades espirituais, é superada somente pela gnose. 

Valentim tinha bem presente que Jesus e Cristo são realidades diferentes e não uma entidade única. Cristo corresponde ao aspeto Filho da Divindade, emanado do amor eterno entre os aspetos masculino e feminino da Divindade absoluta e transcendental. A consciência crística foi manifestada por Jesus e outros grandes mestres espirituais e todos nós somos convidados a manifestá-la. 

Com efeito, Valentim estabelecia uma distinção clara entre o Cristo divino e o Jesus humano. 

O Jesus humano era filho de Maria e José. Ao longo da vida terrena de Jesus, o Cristo divino, mencionado como Espírito do Pensamento do Pai, entre outras designações, manifestou-se através dele de forma sublime. 

Segundo Valentim, Jesus é realmente salvador, mas o termo deve ser entendido na aceção da palavra grega original. Esta palavra grega é “soter”, que significa curador ou doador da saúde, no sentido holístico e espiritual do termo. Não é pelo seu sofrimento e morte, mas pela sua vida e pelo estabelecimento de mistérios que Jesus, o Cristo, realizou a sua obra salvífica. 

Após a sua morte física, Valentim acreditava que o Jesus ressuscitado continuou a aparecer aos seus discípulos por um longo período de tempo, considerando inclusive que se manifestava junto de certas pessoas em visões ou revelações particulares. 

A vivência comunitária da espiritualidade 

Valentim deu uma grande relevância ao assunto da vivência comunitária da espiritualidade. 

A posição proto-ortodoxa era de que a Igreja deveria ser entendida como uma estrutura hierarquizada de bispos, presbíteros, diáconos e leigos. Por seu turno, Valentim, tal como a generalidade dos cristãos gnósticos, aproximava-se claramente do ideal de Jesus, que foi o inspirador de uma comunidade espiritual de homens e de mulheres que se congregavam para viver a experiência do Espírito de Deus e do seu Reino. Valentim permaneceu claramente próximo do significado original da palavra ecclesia (literalmente "assembléia"), sendo descrita o corpo de Cristo que se manifesta na atividade do Espírito Santo. 

Valentim distinguia dois círculos dentro da Igreja. Um círculo era composto por aqueles que tinham conhecimento perfeito (gnose) de Cristo e eram descritos como os pneumáticos.  O outro grupo consistia daqueles que acreditam em Cristo com base no testemunho da fé, os denominados psíquicos, que são a maioria. Na perspetiva valentiniana, Cristo abrigava dentro da igreja crentes pneumáticos e psíquicos com o objetivo de, finalmente, converter todos à espiritualidade autêntica. Por conseguinte, a relação entre ambos os círculos deveria basear-se nos valores da fraternidade e da comunhão. 

Valentim defendia igualmente uma espiritualidade comunitária baseada na diversidade dos carismas e de ministérios e na igualdade entre os seus membros, incluindo entre homens e mulheres, que desempenhavam importantes responsabilidades de liderança.

Uma visão monista da realidade 

Embora o universo físico seja visto como uma emanação do Divino, Valentim acreditava que se pode obter apenas uma compreensão incompleta de Deus no plano físico. A designação usada por Valentim e outros mestres gnósticos é o Demiurgo, entendido como o criador do Cosmos material e psíquico. No entanto, Valentim deixou claro que esta é apenas uma imagem inferior do Deus verdadeiro. Na sua perspetiva, é devido à nossa ignorância da verdadeira natureza da Realidade que acreditamos que as coisas podem ser separadas em opostos. 

 As categorias consideradas opostas estão, de fato, intimamente relacionadas e uma não pode ser compreendida sem a outra. No caso dos Éons, os seres intermediários entre o Deus absoluto e transcendental e o universo material, os componentes de um par ou sizígia são muitas vezes referidas como masculino e feminino. O masculino corresponde à forma e o feminino à substância. Mas estes componentes não são opostos, sendo complementares, formando um estado de totalidade. 

Neste aspeto, Valentim aproximava-se notavelmente das noções de yin e yang, referidas pela filosofia chinesa, segundo a qual o cosmos é regido por forças aparentemente opostas que se complementam num movimento constante. 

Na perspetiva de Valentim, as distinções dualísticas entre corpo e mente, alma e matéria, luz e sombra, não tinham sentido. Todas as coisas são, em última instância, uma.

De modo como a ilusão da multiplicidade resultou da ignorância, ela será superada pelo conhecimento (gnose). Com o conhecimento (gnose) do Divino, o mundo da multiplicidade desaparece, bem como a distinção entre o eu e Deus. Conhecer a Deus é ser Deus. 

A cosmovisão de Valentim mostra um grau especialmente significativo de semelhança com outro sistema monista: a filosofia indiana Advaita Vedanta. 

De acordo com a filosofia Advaita, o mundo material é uma ilusão (maya) atribuída à ignorância (avidya) da verdadeira realidade. Mediante o conhecimento (jnana) da realidade última (Brahman), o mundo da multiplicidade é superado. A verdadeira redenção (moksha) é o conhecimento da verdadeira natureza da realidade. 

Isso levanta a possibilidade de algum tipo de ligação entre ambas as filosofias. Sabe-se que existiam relações entre o Império Romano e o subcontinente indiano. É perfeitamente possível que esta ligação resulta de um processo de intercâmbio intercultural. 

Mas existe uma explicação mais subtil. A ligação entre a cosmovisão de Valentim e a filosofia Advaita Vedanta resulta da conexão profunda com a verdadeira realidade. Tanto Valentim como Shankara, um dos principais sábios Advaita Vedanta, tiveram experiências místicas de iluminação. Deste modo de ver a realidade vieram os seus ensinamentos de sabedoria. Com efeito, na génese das grandes tradições espirituais, religiosas e filosóficas da humanidade existe uma fortíssima experiência mística, vivenciada na sua profunda radicalidade pelos mestres inspiradores e pelos seus seguidores espiritualmente mais comprometidos.

Segundo Stephen A. Hoeller, uma das principais figuras do gnosticismo contemporâneo, dirigente da Gnostic Society e grande amigo da mística gnóstica Rosamonde Ikshvàku Miller, líder do Gnostic Sanctuary, Valentim era e é um conhecedor, um gnóstico para todas as estações, uma fonte de inspiração e orientação para pessoas em todas as épocas e climas: um mensageiro intemporal dos mistérios da alma.  

Daniel José Ribeiro de Faria 






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