Daniel Faria

Uma vida exemplar: O LEGADO DE HIPÁTIA

Por Daniel Faria em Março de 2022

Tema Espiritualidade / Publicado na revista Nº 25

8 de março de 415. Alexandria, Egito, então território do Império Romano do Oriente. Naquele dia, os seus habitantes testemunharam um acontecimento chocante. Um grupo de homens abordaram agressivamente uma mulher, arrastaram-na para dentro de um edifício, onde ela foi assassinada. O nome da mulher era Hipátia, filósofa, matemática e astrónoma, uma das mulheres mais fascinantes da Antiguidade Clássica e da História da Humanidade em geral.

A ÉPOCA DE HIPÁTIA

Hipátia nasceu em 355 em Alexandria, uma das maiores metrópoles do mundo de então, com um milhão de habitantes. Quando Hipátia nasceu, a população do Imperio Romano estava estimada entre 55 e 60 milhões de habitantes, correspondendo a cerca de um quarto da população mundial. 

Alexandria foi fundada em 331 A:C. por Alexandre, o Grande, rei da Macedónia, líder da Liga Helénica e construtor de um império que se estendia do mar Adriático ao rio Indo. 

Rapidamente, Alexandria floresceu e transformou-se num dos maiores centros urbanos do mundo na Antiguidade. No coração desta cidade, estava o Museu, que também funcionava como uma academia, sendo um grande centro filosófico e científico, e a célebre Biblioteca, que tinha uma coleção estimada num milhão de documentos. 

Porem, a Biblioteca teve uma fase de declínio em 48 A.C., quando Júlio César a anexou ao império romano e, acidentalmente, pôs fogo à biblioteca, destruindo assim parte de sua coleção documental

Alexandria era também um centro da maior importância para o judaísmo e o cristianismo. Em Alexandria, localizava-se a maior comunidade judaica fora da terra bíblica de Israel, na qual foi efetuada a tradução das Escrituras Hebraicas (o Antigo Testamento) da língua original para o grego, então a língua internacional por excelência. 

Por seu turno, Alexandria acolhia também uma comunidade cristã dinâmica, merecendo destaque a célebre Escola Catequética de Alexandria, porventura o principal centro de pensamento teológico do cristianismo dos primeiros séculos. Além disso, no topo da organização eclesial do cristianismo adotado no século IV, mais concretamente pelos Concílios de Niceia (325) e de Constantinopla (381), estavam os cinco patriarcados. Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.  

O Egito, uma das principais possessões romanas, era governada por um prefeito nomeado diretamente pelo Imperador.

Em 395, com a morte do imperador Teodósio, o Império Romano foi definitivamente dividido em dois: o Império Romano do Ocidente, com capital em Roma, e o Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla. Com a divisão do Império, Alexandria passou a integrar o Império Romano do Oriente. 





A VIDA E A OBRA 

Hipátia foi criada num ambiente marcado pela filosofia e pelas ideias. O seu pai, Théon, bibliotecário da Biblioteca de Alexandria, era um estudioso do Museu, conhecido pelos filósofos e cientistas ilustres, designadamente os seguintes: Euclides (360-295 A.C.) , Eratóstenes de Cirene (276-194 A.C.), Arquimedes de Siracusa (287-212A.C..), Apolónio de Perga (262-194 A.C.), Aristarco de Samos (310-230 A.C.), Hipsicles (190-120 A.C.), Héron de Alexandria (10-80), Nicómano (60-120), Menelau de Alexandria (70-130), e Ptolomeu de Alexandria (90-168).

Hipátia era uma mulher extraordinária para a sua epoca. Ela não fora criada de acordo com o papel atribuído às mulheres na tradição da Antiguidade Classica, que estava concentrado nas necessidades domésticas e familiares. 

Em contrapartida, Hipátia trilhou uma formação multidisciplinar, abrangendo filosofia, matemática, astronomia, religião, poesia, artes, oratória e retórica.

Valorizando o ideal helenístico de uma mente sã num corpo são, submetia-se quotidianamente a uma rigorosa disciplina física.

Ao longo da sua juventude, esteve em Atenas, de modo a aprofundar a sua formação na Academia, fundada por Platão. Destacou-se pela dedicação para unificar a matemática de Diofanto com o neoplatonismo de Amónio Sacas e de Plotino, mediante a aplicação do raciocínio matemático ao conceito neoplatónico do Uno, que se refere ao Divino, dado que a sua principal característica qualificativa é a indivisibilidade.

Hipátia detinha uma grande autoridade ética. As generalidades das fontes históricas descrevem-na como um modelo de coragem ética, retidão, veracidade, dedicação cívica e elevação intelectual. A virtude mais venerada nela pelos contemporâneos era a sua sophrosyne, um estado de espírito caraterizado peto autoconhecimento, que enquadrava tanto a sua conduta social como as suas qualidades interiores. Manifestava-se através dos valores elevados, da dignidade da atitude, da modéstia, do ascetismo, da relevância do papel da mente, da temperança e da moderação na vida pessoal e social. 

Hipátia valorizava o amor pela sabedoria na sua diversidade e a liberdade de espírito. Daí ter na sua escola alunos pagãos, cristãos e judeus. 

Entre os seus alunos cristãos, merecem destaque Sinésio, bispo de Plotemais, cidade situada na Cirenaica (atual Líbia) e Orestes, prefeito do Egito.

Sinésio tornou-se célebre por incorporar os princípios do neoplatonismo com a mensagem cristã. Sinésio estabeleceu uma correspondência frequente com Hipátia, à qual se dirigia como “minha mãe, minha irmã e benfeitora minha”. 

Mediante a correspondência entre Sinésio e HIpátio, sabe-se que ela desenvolveu alguns instrumentos usados na Física e na Astronomia, entre os quais o hidrómetro. Sabemos também que desenvolveu estudos sobre a Álgebra de Diofanto (“Sobre o Cânon Astronómico de Diofanto”), tendo escrito um tratado sobre o assunto, além de comentários sobre os matemáticos clássicos, incluindo Ptolomeu. Em colaboração com o pai, escreveu um tratado sobre Euclides. Ficou famosa por ser uma grande solucionadora de problemas matemáticos e filosóficos.

Focada no processo de aprofundamento e de transmissão da sabedoria, quando lhe perguntavam a razão por que não casara, respondia que já era casada com a Verdade.





RUMO À TRAGÉDIA

Hipátia viveu numa época marcada por grandes transformações, que marcaram decisivamente o percurso histórico da Humanidade.

O reinado de Teodósio (379-395), o último imperador a governar um Império Romano unido, marcou o auge da transformação do cristianismo, que se tornou na religião oficial do Império, de uma forma cada vez mais exclusivista.

Em 24 de novembro de 380, Teodósio promulgou o Edito de Tessalónica, que consagrou o cristianismo definido pelo Concílio de Niceia como a única religião oficial do Imperio Romano. 

Com este diploma legal, a liberdade religiosa prometida por Constantino através do Edito de Milão de 313, foi posta de parte. Não foram somente as diversas formas de paganismo que foram ilegalizadas. As próprias correntes do cristianismo que não se identificavam com a ortodoxia definida em Niceia, como o gnosticismo e o arianismo, foram marginalizadas. Embora continuasse a ser tolerado, o estatuto jurídico do judaísmo foi desvalorizado.

Estava dado o mote para promover a intolerância, a autocracia e a perseguição das ideias consideradas adversas pelos poderes instituídos.

Em 391, o templo de Serápis e a sua famosa biblioteca foram destruídos por uma multidão instigada pelo patriarca de Alexandria, Teófilo.

Apesar destes acontecimentos, existia uma relação cordial entre o patriarca Teófilo e Hipátia, permitindo a esta desenvolver a sua atividade filosófica, social e cívica. 

Com a morte de Teófilo e a ascensão de Cirilo ao cargo de patriarca de Alexandria, em 412, a violência contra os pagãos, os judeus e os cristãos considerados heréticos ou dissidentes tornou-se cada vez mais frequente.

A comunidade judaica, constituída por 40.000 pessoas, foi expulsa, na sequência de um conjunto de incidentes violentos. Os cristãos que não concordavam com as ideias e as práticas de Cirilo também foram perseguidos, dentro e fora de Alexandria.

O prefeito imperial, Orestes, antigo de Hipátia, tentou restabelecer a ordem pública e enfrentou diretamente o cada vez mais poderoso patriarca. Frequentemente, buscou o conselho sábio e prudente de Hipátia, nos assuntos governamentais

Sabendo da admiração que Orestes nutria por Hipátia, ela logo tornou-se um alvo da hostilidade Cirilo e os seus adeptos. 

Em março de 415, uma multidão de monges apoiantes de Cirllo, conhecidos como parabolanos, encabeçada por Pedro, o Leitor, atacaram Hipátia á porta de sua casa. Apos a terrem arrastado para o interior de uma igreja, despiram-na e torturavam-na até à morte com conchas e pedaços de telha. Por fim, queimaram os seus restos mortais.

A HERANÇA DE HIPÁTIA. 

A vida filosófica de Alexandria não se apagou completamente com o desaparecimento trágico de Hipátia. 

Filósofos e cientistas continuaram os seus estudos na Antiguidade tardia. Muitas mulheres dessa época dedicaram-se à filosofia, e, entre elas, Sosípatra foi uma filósofa influente da Antiguidade tardia, que ensinou filosofia em Pérgamo, na atual Turquia. No século V, muitas outras pagãs e cristãs sábias viviam em Alexandria, entre as quais: a filósofa Asclepigénia, filha de Plutarco; Edésia, filósofa e mãe de filósofos; Santa Teodora, Eugénia e Santa Maria Egipcíaca.

Contudo, a morte de Hipátia foi um marco fortemente negativo da História da Humanidade. Marcou o triunfo da intolerância contra a diversidade, da autocracia contra a liberdade, das trevas contra a luz.

Na sua obra “Cosmos”, Carl Sagan analisou desta forma lúcida a morte de Hipátia e as suas consequências trágicas para a humanidade:

“Há cerca de 2.000 anos, emergiu uma civilização científica esplêndida, na nossa História, e a sua base era Alexandria. Apesar das grandes oportunidades de florescer, ela decaiu. A sua última cientista foi uma mulher, considerada pagã. O seu nome era Hipátia. Com uma sociedade conservadora a respeito do trabalho da mulher e do seu papel, com o aumento progressivo do poder da Igreja, formadora de opiniões e conservadora quanto às ciências e devido a Alexandria estar sob o domínio romano, após o assassinato de Hipátia, em 415, essa biblioteca foi destruída. Milhares de preciosos documentos dessa biblioteca foram em grande parte queimados e com ela todo o progresso científico e filosófico da época”.

Um contemporâneo de Hipátia, o filósofo Temístio de Pflagónia, tinha feito o seguinte pedido ao imperador Teodósio: “Mesmo sendo um só o verdadeiro e grande juiz, o seu caminho até ele não é único. Seria tentado a dizer que seja o próprio Deus a não aceitar que entre os homens haja uma harmonia total”. 

O próprio Jesus referiu-se à diversidade de vias para alcançar o Divino quando disse: “Na casa do meu Pai, há muitas moradas”.

Infelizmente, Cirilo, que se considerava a si próprio como paladino do cristianismo, pareceu esquecer-se igualmente de outras palavras sábias de Jesus:

“Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende a candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas sim em cima do candelabro, e assim alumia a todos os que estão em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu”.

Daniel José Ribeiro de Faria 







ARTIGO SUGERIDO

Sexualidade Divina

Sexualidade Divina

Por Maria Adelina (Homenagem) em Dezembro 2021
Tema Consciência / Publicado na revista Nº 24

Em pleno século XXI, a sexualidade e o sexo continuam a ser tabu, agora já não pela proibição ou negação, mas pelo abuso e banalização do mesmo o que, e de uma outra forma continua a ...
Ler mais